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De Shakespeare para o STF
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Teve início há pouco a última fase do julgamento do mensalão, que avalia os embargos infringentes. Não sou da área jurídica, e confesso ter a sensação, às vezes, de estar assistindo a outra língua quando escuto nossos eminentes ministros (com nada honrosas exceções).

Aqui, pretendo apenas resgatar a suposta sabedoria atemporal de Shakespeare. O bardo sabia uma coisa ou outra, e em O Mercador de Veneza, uma das interpretações possíveis diz respeito justamente ao tema em análise.

De forma bem resumida: Antônio, um mercador de Veneza, aceita ser o fiador de um empréstimo de seu amigo Bassânio, já que está sem liquidez disponível no momento (seus recursos estão investidos em navios que estão a navegar). O credor é o rico judeu Shylock.

Avançando na história, a sorte de Antônio muda, seus navios não chegam a tempo, e Shylock tem direito, segundo o contrato, de extrair uma libra de carne do fiador da dívida. Os devedores chegam a oferecer o dobro da quantia, mas Shylock está irredutível: contrato é contrato, e o que seria desse rico estado comercial sem a confiança nos contratos?

Pórcia, amante de Bassânio, disfarça-se de juiz e avalia o caso. Tenta dissuadir Shylock de sua intransigência. Mas ele fora a vida toda vítima de antissemitismo e do escárnio dos cristãos, e parece ansiar por vingança acima de tudo. Não perdoa a quebra de contrato, nem pela quantia maior ofertada.

Eis que Pórcia tem a grande sacada da peça: se é para seguir o contrato de forma precisa, letra por letra, e não o “espírito da lei”, então tudo bem; Shylock pode retirar a libra de carne de Antônio, mas nem uma única gota de sangue pode sair junto. Afinal, nada disso consta no contrato entre as partes.

Shylock entra em desespero, naturalmente. Foi vítima de sua própria obsessão contratual, ignorando qual era o espírito daquele contrato. Pagou o preço por seu erro.

Penso nisso tudo quando vejo a fase final do mensalão. Alguns ministros tentam se pegar minuciosamente em frases soltas, jurisprudência questionável (o caso em julgamento não tem precedentes), brechas legais, tudo para reabrir o julgamento, o que seria atrasá-lo quase indefinidamente.

O Brasil não merece isso! A impunidade é um dos grandes males de nossa nação, especialmente para os criminosos poderosos. O julgamento do mensalão reacendeu uma chama de esperança em muita gente. Lembrem-se de Shylock, senhores ministros. É fundamental, sim, respeitar e seguir o império das leis escritas. Mas mais importante ainda é compreender o espírito da lei.

O mensalão existiu, as provas e evidências são fartas, o julgamento já levou tempo demais, e chegou a hora da punição prevista pelo próprio STF. Que tudo isso não acabe em pizza por conta de subterfúgios legais questionáveis. Seria um duro golpe na nossa jovem República democrática.

Ao contrário do editorial da Folha de hoje, que “não vê motivo de satisfação no espetáculo de trancafiar, entre aplausos, este ou aquele figurão”, os brasileiros querem e precisam ver tais figurões atrás das grades, pagando por seus crimes, pelo golpe tentado contra nossa democracia. Esse é o espírito da lei que deve ser levado em conta hoje!

PS: O novato ministro Barroso já votou a favor dos embargos infringentes, mas não fiquei surpreso. Também posso casar uma boa grana e apostar antecipadamente nos votos do ministro Toffoli e Lewandowski. Mas sei que ninguém pegaria o outro lado da aposta…

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