• Carregando...
Depois da Guerra Fria
| Foto:

Resgato mais um texto antigo que trata, ainda que en passant, dos acontecimentos no leste europeu de hoje. Comparo três análises distintas sobre o significado do fim da Guerra Fria: Fukuyama, Golitsyn e Huntington. Do otimista ao mais pessimista, passando pelo “conspiratório”. Muitos foram os que celebraram o fim da Guerra Fria como o fim da ameaça comunista ou soviética. Talvez tenham se precipitado…

Depois da Guerra Fria

“O jeito mais rápido de acabar com uma guerra é perdê-la.” (George Orwell)

Com o término da Guerra Fria, automaticamente concluiu-se que o próprio comunismo chegara ao fim também. Diversos experts em geopolítica publicaram suas teses para o que iria acontecer no mundo daquele momento em diante. Este texto visa basicamente a forçar uma reflexão sobre os possíveis caminhos adotados no quadro geopolítico mundial, de profundo impacto na vida de todos. Serão abordadas três visões de forma bem resumida, servindo portanto apenas para um início de debate sobre tema tão complexo. Como cada visão representa uma hipótese diferente, teremos assim um amplo desenho das possibilidades para o que está ocorrendo de fato no mundo atual.

O primeiro caso foi defendido por Francis Fukuyama, que desenvolveu sua teoria no otimista O Último Homem e o Fim da História, um livro que mereceu boa atenção no mundo todo. De forma resumida, o autor acreditava que o Ocidente vencera, e que seu modelo seria adotado pelas antigas nações comunistas. A democracia, a sociedade aberta, o capitalismo, enfim, todo exemplo de sucesso seria replicado pelos perdedores da guerra. Do lado desta visão está a seleção natural, a capacidade humana de aprendizado. Podemos de fato supor que no longo prazo o melhor irá prevalecer. Mas contrário a Fukuyama encontra-se a briga pelo poder, o fato de que os poderosos não costumam capitular tão facilmente. Sua visão acaba parecendo um tanto ingênua.

O segundo caso foi defendido por um ex-espião da KGB, Anatoly Golitsyn, que fugiu para o Ocidente. Suas teorias, com forte embasamento e conhecimento de dentro, chegaram a ser entregues para a CIA em forma de memorando, objetivando alertar o mundo para a suposta verdade por trás das mudanças nos países comunistas. Em New Lies for Old e The Perestroika Deception, o autor defendeu a hipótese de que a “revolução” ocorrida nesses países foi uma farsa, não se deu de baixo pra cima, mas sim foi planejada pelos próprios estrategistas comunistas. Golitsyn fez diversas previsões com sua tese e conhecimento, e de fato acertou inúmeras, como a queda do muro de Berlim, por exemplo.

Antecipando o fracasso do modelo socialista no estilo repressivo de Stalin, a nomenklatura teria que se adaptar, conforme o ensinado por Lênin. Este chegou a adotar sua NEP (Nova Política Econômica) em 1921, que era uma enorme concessão ao capitalismo no âmbito econômico, mas que visava na prática fortalecer o comunismo. Os líderes comunistas estariam então forçando certas mudanças, enganando o Ocidente para alcançarem o objetivo final, a vitória comunista. Isso seria possível através de uma convergência aparente de modelos, possibilitada pela ingenuidade e ignorância do Ocidente frente à estratégia comunista, no “melhor” estilo Sun Tzu. Os avanços capitalistas em uma Rússia e China, então, não seriam vitórias genuínas do capitalismo, mas adaptações controladas para fortalecer uma ideologia ainda existente, de luta de classes, que pretende na essência a destruição do capitalismo.

Do lado de Golitsyn estão diversos fatos históricos previstos pelo autor, medidas obscuras adotadas por líderes socialistas e declarações dos próprios comunistas no poder. O simples fato do atual presidente russo ser um ex-KGB, e ter adotado medidas que concentram assustadoramente o poder, levanta um sério alerta. Seria como o presidente da Alemanha pós-Hitler ser um renomado membro da Gestapo ou SS. Algo que pode, entretanto, suscitar certa desconfiança quanto ao quadro pessimista pintado pelo autor é o fato dele ser ex-comunista de carteirinha. É da natureza humana valorizar aquilo que conhecemos melhor, ver o mundo sempre por esta ótica. Reconhecer o fim do comunismo seria como sucatear toda uma vida de estudos, lançar no lixo sua grande vantagem comparativa, sua expertise sobre o tema. Para um homem com apenas um martelo, tudo lhe parece um prego. É o risco da visão estreita, enviesada, pelo fato de querermos, mesmo que inconscientemente, ver o mundo pelo prisma que melhor entendemos. Mas isso não reduz a seriedade a qual devemos analisar as teorias de Golitsyn, que são profundamente embasadas.

Por fim, temos a teoria de Samuel Huntington, expressa no seu livro Choque de Civilizações. O comunismo seria o elo comum entre diversos grupos heterogêneos, unidos somente por esta causa ideológica maior. Uma vez que a cortina de ferro cai e torna aparente os pilares de areia do modelo, perde-se o denominador comum entre esses grupos. Assim, as antigas diferenças, ocultadas pela luta comum anterior, surgem novamente com força intensa. Numa analogia futebolística, do jeito que Lula gosta, seria como torcedores dos rivais Flamengo e Vasco que se uniram para defender o Brasil, mas que quando retornam à realidade local, partem uns para cima dos outros. Com tal tese, Huntington antecipou os problemas no Kosovo, imaginando corretamente que os fatores civilizacionais iriam balançar a região, uma vez que sérvios e croatas não estariam mais sob o mesmo manto comunista.

Qual dessas visões está correta, ou mais perto da verdade? Difícil dizer. Talvez não precise ser apenas uma das três a verdadeira. A geopolítica mundial é absurdamente complexa, tal como a natureza humana. A luta pragmática por poder, a lavagem cerebral ideológica, a força dos mercados, talvez tudo isso exerça influência, sem uma forte predominância. Provavelmente existe uma parcela de verdade na visão de Fukuyama, principalmente se considerarmos o longo prazo, imaginando que as forças naturais do melhor modelo irão prevalecer, moldar o mundo.

Afinal, mesmo que ainda bastante deficiente, a democracia conquistou o globo. Mas como ignorar os alertas de Golitsyn, sabendo que a ideologia comunista virou religião dogmática, dominando completamente a razão em muitos adeptos? Como abandonar suas teorias se vemos um mundo cada vez mais dominado por modelos híbridos, onde o poder acaba concentrado no governo? E como não dar valor aos argumentos de Huntington quando observamos o que ocorre no mundo islâmico, uma jihad defendendo explicitamente o choque de civilizações, para aniquilar o Ocidente capitalista?

Independentemente de qual desses autores chegou mais próximo da verdade, a conclusão que me parece mais óbiva é que os defensores da liberdade, do capitalismo, da sociedade aberta, nunca poderão descansar. As forças e os interesses contrários a esta liberdade são vastos. Grupos sempre irão se organizar para tentar conquistar o poder, escravizar a humanidade, controlar as vidas e riquezas alheias. Comunistas, fascistas, islâmicos fundamentalistas, social-democratas (apenas uma cor vermelha um pouco desbotada), todos esses que visam a destruição do único modelo que possibilita a liberdade individual, precisam ser combatidos. E essa guerra será eterna. Afinal, o único jeito de acabar com ela rapidamente, é perdendo. Isso significaria a morte da liberdade.

 Rodrigo Constantino

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]