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Deve o liberalismo ser amoral?
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Escrevi um texto sobre a postura de algumas pessoas que confundem ser liberal com ser libertino ou ignorar qualquer debate sobre valores culturais. Gerou bastante polêmica. Um velho conhecido meu de debates, quem respeito apesar das divergências, fez o seguinte comentário, claramente em resposta ao meu artigo:

O liberal consciente escolhe suas batalhas, que geralmente dizem respeito ao relacionamento entre o estado e o indivíduo. Ele não sai por aí atirando a torto e a direito, condenando ações individuais que não lhe afetam. O seu lema é “viva, e deixe viver”. Ao contrário do conservador, o liberal não tenta transformar as outras pessoas na sua própria imagem e semelhança. Isso não tem absolutamente nada a ver com ser libertino ou bobalhão; isso chama-se tolerância, que é, aliás, uma virtude importantíssima se queremos viver em uma sociedade pluralista.

Como o comentário veio de alguém que é liberal e que considero inteligente e bem-intencionado, creio que cabe resposta, para aprofundarmos o debate, que considero de fundamental importância. Vale notar que o autor não é contra emitir opiniões, e sim fazê-lo enquanto liberal, ou em nome do liberalismo. Eis o que penso sobre isso.

O lema “viva, e deixe viver” é bonito na teoria, mas na prática pode levar a casos que colocam em xeque a própria sobrevivência do liberalismo. E minha principal objeção ao argumento levantado pelo colega é essa: quando o liberal entende que o ambiente de valores morais e culturais é crucial para a permanência do próprio liberalismo, que não nasce ou sobrevive em um vácuo de valores comportamentais, então, sim, ele deve emitir suas opiniões sobre comportamento mesmo enquanto liberal.

Um dos exemplos que podemos usar é o núcleo familiar enquanto instituição. Se o liberal acreditar que a família é crucial para segurar o avanço estatal e para preservar a transmissão de valores morais e culturais que garantem a manutenção da liberdade, então defendê-la publicamente contra constantes ataques que visam à sua destruição ou enfraquecimento será defender o liberalismo.

Outro exemplo, que o próprio autor do comentário tinha em mente ao escrevê-lo, diz respeito ao julgamento que emiti acerca de pessoas tatuando os próprios olhos. Não é um caso de tolerância ou pluralismo, como coloca o crítico em questão, pois, enquanto liberal, eu tolero, sim, essa atitude. Não quero intervenção estatal para impedi-la. Mas penso que, mesmo falando em nome do liberalismo, chamar a atenção para esse tipo de comportamento bizarro é aceitável e até desejável. Explico.

Ao tatuar os olhos, a pessoa não agride terceiros, apenas ela mesma. Mas se vivermos em um ambiente cultural onde esse tipo de coisa é visto como normal e, pior, criticar isso passa a ser sinônimo de “preconceito” ou moralismo, então acabaremos (se é que já não estamos lá) em uma sociedade que suspende todo tipo de julgamento estético em nome do politicamente correto.

Para mim, isso é um passo para a suspensão do julgamento ético. É o caminho do relativismo moral absoluto, onde vale tudo, pois tudo é normal. Se nada mais é objetivamente condenável, pois seria sinônimo de preconceito, então seremos vítimas de um mundo amoral. E, ao colocar o belo e o feio, o bom e o mau, o decente e o indecente em plano de igualdade, estaremos condenando o belo e enaltecendo o feio, condenando o bom e enaltecendo o mau.

Eu penso que esse tipo de mentalidade tem influência no próprio liberalismo. Adam Smith, antes de falar da riqueza das nações, escreveu sobre os sentimentos morais. A empatia pelo próximo, por exemplo, deveria ser valorizada, segundo o pensador escocês.

Mas pela ótica estritamente individualista e amoral, quem poderia dizer se é melhor demonstrar empatia ou simplesmente ignorar todos em volta? Live and let die… Desde que a pessoa não inicie agressão alguma contra terceiros, tudo estaria valendo. Isso é mesmo desejável do ponto de vista da sociedade? O liberalismo não corre mais riscos em um ambiente como esse?

Alguns desses liberais (ou libertários) chegam ao ponto extremo de condenar como antiliberal ter julgamento sobre comportamentos que não agridam outros. Exemplo: você defender que é melhor ser uma médica em vez de uma prostituta. Pensam que é mera questão de preferência subjetiva, tal como escolher entre azul e amarelo.

Mas pode uma sociedade minimamente decente (opa, quem saberia o que é decente?) sobreviver se a maioria realmente considerar que é simples questão de gosto pessoal colocar a medicina acima da prostituição do ponto de vista moral?

O “viva, e deixe viver” tampouco faz distinção entre o que cada um “escolhe” consumir. Se um escolhe gastar todo seu dinheiro em crack, e o outro escolhe investir na educação dos filhos, isso seria indiferente por essa ótica individualista (ou sociopata?).

Mas essa postura não afeta o liberalismo? Uma sociedade onde comprar drogas ou investir na educação dos filhos são vistos como uma pura questão de preferência individual (e ai de quem condenar isso, pois não é nada liberal expor enquanto liberal tais coisas), pode prosperar e resguardar as liberdades? Penso que não.

Por fim, vale citar ainda o argumento utilitarista e pragmático contra a opinião do colega. Do ponto de vista político e eleitoral, é simplesmente suicídio defender bandeiras “liberais” que, no fundo, mais parecem indiferentes a todo o entorno. Quem vender uma bandeira dessas dará um tiro no pé. Será que o liberal não deve se preocupar com eleições e “besteiras” do tipo? Bela forma de lutar pelo liberalismo…

O liberal não precisa ser um moralista chato, sem dúvida. Mas daí a pensar que ele deve ser amoral enquanto liberal, pois liberalismo é ligar o “dane-se” para o que todos fazem à sua volta, vai uma longa distância. Os valores morais e culturais podem e devem, sim, ser defendidos pelo liberal qua liberal, se ele, como é meu caso, entender que tais valores são fundamentais para preservar a própria liberdade.

PS: Se quiserem me chamar de conservador por isso, e não mais de liberal, fiquem à vontade. Os rótulos me preocupam menos do que a defesa daquilo que considero certo e melhor para preservar as próprias liberdades individuais. Mas acho importante defender que a pessoa não precisa abandonar o liberalismo para se preocupar com os valores morais da sociedade.

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