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Os limites morais do mercado. Ou: O que o dinheiro não compra
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Passei esse fim de semana na “companhia” de Michael J. Sandel, popular professor de filosofia em Harvard. Já havia lido seu instigante livro Justiça, que resenhei para o Ordem Livre. Dessa vez, mergulhei em O que o dinheiro não compra, espécie de continuação do livro anterior, e tão instigante quanto.

As provocações feitas pelo autor são muito boas, especialmente para um economista liberal como eu. Economistas costumam pensar em termos de incentivos e utilidade, e os liberais valorizam as escolhas individuais acima de tudo.

Mas quais os limites para isso? Que tipo de sociedade desejamos criar? A mercantilização de quase todas as esferas da vida em sociedade é moralmente neutra, como alegam os economistas, ou corrompe normas e valores caros a todos?

São as perguntas que Sandel procura responder no livro. Confesso dedicar quase todo meu tempo ao combate oposto, qual seja, o excesso de politização de nossas vidas, quando tudo precisa passar pelo crivo da política, democracia e estado. Mas tendo a concordar com o autor que há o outro lado da moeda, tão arriscado quanto este: quando tudo passa a ser uma transação mercadológica, com preço monetário e tudo. Diz Sandel:

Hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim.

Virgindade leiloada? Testa tatuada para marketing de um produto? Material escolar com propaganda empresarial? Carros de polícia com publicidade privada? Mercado de órgãos humanos? Compra e venda de título de paternidade? Será que o escopo do mercado ultrapassou limites razoáveis? Sandel pensa que sim, e tem bons argumentos.

Seu livro é recheado de casos empíricos que forçam uma reflexão acerca do mundo em nossa volta. Sandel não é ignorante sobre o ponto de vista econômico e liberal. Ao contrário: ele traz sempre esse lado ao debate, mas o coloca em confronto com outros valores. Há um claro trade-off em jogo, e muitas vezes a resposta não será fácil.

Devemos, por exemplo, pagar a crianças para que leiam mais livros? Alguns fizeram isso, mas os resultados não são evidentes. As crianças podem até ler mais com esse incentivo, mas a leitura em si deixa de ser um objeto de engrandecimento pessoal e passa a ser um fardo para uma meta monetária. Sandel resume seu ponto:

É um debate que não ocorreu durante a era do triunfalismo de mercado. Em conseqüência, sem que nos déssemos conta, sem mesmo chegar a tomar uma decisão a respeito, fomos resvalando da situação de ter uma economia de mercado para a de ser uma sociedade de mercado. A diferença é esta: uma economia de mercado é uma ferramenta – valiosa e eficaz – de organização de uma atividade produtiva. Uma sociedade de mercado é um modo de vida em que os valores de mercado permeiam cada aspecto da atividade humana. É um lugar em que as relações sociais são reformadas à imagem do mercado.

Sandel pretende trazer de volta o aspecto moral para o debate público. Se tudo está à venda, então valores morais serão corroídos. Se os votos podem ser livremente negociados, por exemplo, a cidadania é corrompida. Se pais podem negociar a tutela dos filhos, então a paternidade é corrompida. O mercado não seria neutro ou amoral, nesse aspecto;  ao permitir seu funcionamento em certos campos, ele acabaria corrompendo valores que deveríamos enaltecer. Ele explica:

Os economistas muitas vezes partem do pressuposto de que os mercados não afetam nem comprometem os bens que regulam. Mas não é verdade. Os mercados deixam sua marca nas normas sociais. Muitas vezes, os incentivos de mercado corroem ou sobrepujam os incentivos que não obedecem à lógica do mercado.

Há coisas que o dinheiro não pode comprar, como amizade ou amor verdadeiros (apesar da ironia de Nelson Rodrigues). Mas cada vez mais coisas se encontram à venda. Nos últimos anos, muitos têm comprado, por exemplo, discursos de padrinho em casamentos, ou dado presentes em dinheiro. Para os economistas, isso faz até sentido: quem recebe sabe melhor o que deseja. Há, portanto, aumento de utilidade. Mas como fica o outro lado da questão?

Será que não se corrompe o valor de um presente quando ele é transformado simplesmente em dinheiro? Será que boa parte de seu valor (não monetário) não está justamente na dedicação de quem compra em tentar agradar, ainda mais se for uma pessoa próxima? Qual o valor de um discurso de um padrinho despersonalizado, comprado pela internet?

Moralista assumido e admirador de Aristóteles, Sandel pensa que determinados valores, como generosidade, altruísmo, solidariedade e espirito cívico, precisam ser nutridos, transformados em hábitos pela prática. Seriam como músculos que se fortalecem com os exercícios. Ele diz: “Um dos problemas de uma sociedade movida pelo mercado é que tende a permitir a degeneração dessas virtudes”.

Nem tudo que é imoral deveria ser ilegal, naturalmente. A ilegalidade passa pelo uso da coerção estatal para coibir determinada prática. Tal instrumento, além de invadir as liberdades individuais, não está livre de corrupção também, ou de riscos de abuso. Como liberal, prefiro pecar sempre pelo excesso de liberdade individual, não o contrário.

Dito isso, acredito que as provocações de Sandel são bem pertinentes. Principalmente nos tempos modernos, onde o relativismo moral alcançou patamares assustadores. Se tudo é preferência subjetiva e nada é moralmente objetivo, então a prostituta ou a esposa fiel e dedicada possuem valor igual, pura questão de gosto do “freguês”. Aquele que vende um bem que melhora nossa qualidade de vida ou o que vende crack na saída da escola são equivalentes, pois ambos procuram atender a uma demanda.

Não dá para concordar com tanto relativismo. É postura execrável e covarde. Claro que, no fundo, sabemos que existem outros valores em jogo que merecem respeito e devem ser honrados. É degradante uma menina perder sua virgindade após um leilão na internet, em vez de fazê-lo com um namorado, ambos apaixonados e descobrindo os encantos da vida sexual. Não importa que ela pense o contrário, ou que seja livre para realizar tal troca.

Uma sociedade tomada por essa mentalidade de que tudo pode ou deve ser colocado à venda é uma sociedade corrompida. Sandel termina seu livro deixando duas perguntas importantes no ar:

Queremos uma sociedade onde tudo esteja à venda? Ou será que existem certos bens morais e cívicos que não são honrados pelo mercado e que o dinheiro não compra?

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