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As ameaças tirânicas do comunismo e do fascismo e as lições do século XX
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Aproveitei minhas curtas “férias” para ler On Tyranny: Twenty Lessons from the Twentieth Century, do professor de História em Yale Timothy Snyder. O livro tem insights interessantes, mas já adianto seu maior deslize: a paranoia com o governo Trump, visto como a grande ameaça à democracia americana dos últimos tempos. Esses arroubos partidários quase estragam a pequena obra, que ainda assim merece ser lida.

Para Snyder, tanto o fascismo como o comunismo são reações ao mesmo fenômeno: a globalização. Desigualdades reais ou imaginárias são criadas pelo processo global do capitalismo, e muitos ficam com a sensação de que as democracias liberais são incapazes de lidar com os problemas. Os fascistas, então, rejeitam a razão em nome do desejo, negam a verdade objetiva em favor do glorioso mito articulado por líderes que alegam dar voz ao povo.

Para o autor, os americanos de hoje não são mais sábios do que os europeus que viram suas democracias levarem ao fascismo, ao nazismo e ao comunismo no século XX. Mas há uma vantagem: eles podem aprender com os erros do passado, com a experiência europeia. E agora, diz Snyder, é uma boa hora para isso, já que ele considera Trump uma ameaça nessa direção.

Nós normalmente achamos que as instituições vão automaticamente se preservar contra os diferentes ataques diretos, mas esse foi justamente o equívoco dos europeus, dos judeus alemães diante de Hitler, por exemplo. O erro é assumir que os governantes que chegaram ao poder por meio das instituições não podem destruí-las depois, de dentro do poder. Em alguns casos, isso é exatamente o que eles prometeram fazer, como aconteceu na Venezuela e quase aconteceu no Brasil petista.

No caso do nazismo, foi necessário menos de um ano para que se consolidasse o poder em torno de Hitler e seus cúmplices. No final de 1933, a Alemanha já era na prática uma nação unipartidária, e todas as instituições importantes tinham sido dominadas. Em novembro daquele ano, houve eleições parlamentares sem oposição e um referendo “popular” em que todos sabiam quais deveriam ser a respostas “certas”, apenas para confirmar a nova ordem. Alguns votaram nos novos líderes na esperança de que seriam beneficiados depois pela “lealdade”. Esperança vã.

“Qualquer eleição pode ser a última, ou ao menos a última durante a vida da pessoa votando”, alerta Snyder. E isso pode ocorrer mesmo nos Estados Unidos? O autor diz que sim, e lembra que os “pais fundadores” eram céticos, e por isso entendiam que o preço da liberdade é a eterna vigilância. O sistema republicano serve para mitigar as consequências das imperfeições democráticas, não para celebrar uma perfeição imaginária. Quando a maioria começa a sonhar com a perfeição, o risco é evidente.

O ambiente polarizado e radicalizado em nada ajuda. Snyder acredita que cada um deve buscar em si um antídoto para essas tentações, lendo mais livros, tentando se informar melhor, conhecendo mais pessoas e tendo contato direto com elas, o que pode evitar os processos de desumanização dos adversários, tratados como inimigos mortais com base em rótulos depreciativos e abstrações. É preciso colocar a ética profissional em primeiro lugar também, sem ceder às tentações do poder. E é fundamental evitar a pressão de grupo, a necessidade de conformismo, o que nós brasileiros chamamos de “Maria vai com as outras”. Pensamento independente, coragem, ética, compromisso com a verdade e a liberdade: eis a receita contra o fascismo e o comunismo.

Você se submete à tirania quando abre mão da diferença entre o que deseja escutar e o que é efetivamente o caso, diz Snyder. O primeiro estágio é a hostilidade contra a realidade objetiva, verificável, que assume a forma de apresentar invenções como se fossem fatos. O segundo estágio é o do pensamento mágico, abraçar abertamente a contradição. O estágio final é a fé fora de lugar, como quando se passa a acreditar em promessas impossíveis, num messias salvador da Pátria, no líder que diz representar todo o povo e que vai consertar os defeitos todos sozinho.

O totalitarismo remove as diferenças entre o público e o privado, não só tornando cada indivíduo um escravo, como afastando toda a política da normalidade, em direção a teorias da conspiração. Tudo acaba sendo politizado, e não há mais espaço para a esfera particular, para a privacidade, para a vida fora da disputa partidária. A ideia de “regime de exceção” se faz necessária, e o clima é o de uma guerra constante. Na guerra, afinal, podemos deixar de lado certas “frescuras” como o respeito às leis e a civilidade. Derrotar o inimigo mortal é a única prioridade. Por isso a mentalidade autoritária adora metáforas de guerra.

Tudo isso é muito razoável e, para mim, correto. O grande deslize do livro, como disse, está na leitura de que Trump é esse fascista terrível. Não nego que seu estilo bufão, principalmente durante a campanha, e a militância que ele conseguiu criar com base em slogans simplistas como “Make America Great Again”, além da mensagem nacionalista, geraram extremo desconforto não só em mim, como em inúmeros liberais e também conservadores. Tanto que vários republicanos chegaram a criar o movimento “Never Trump”, para não misturar esse estilo histriônico e personalista ao legado conservador.

Mas, em primeiro lugar, Trump venceu. Claro que vencer não é tudo, mas é o primeiro passo para reverter o rumo “progressista” equivocado. Em segundo lugar, em que pese seu estilo populista, o fato é que Trump pretende reduzir o papel do estado, não aumentá-lo. E isso, convenhamos, não é muito alinhado com o que queria Mussolini, com tudo dentro do estado, nada fora dele. “Drenar o pântano em Washington” pode até ser um slogan demagogo contra toda a política, perigoso até, mas não é parecido com concentrar todo poder em Washington.

Sobre as mentiras usadas por Trump como verdades, levando ao uso abusivo da expressão “era da pós-verdade” pelos jornalistas e pensadores, vale notar que todos os políticos antes dele mentiram, e que principalmente a imprensa se mostrou enviesada e torcedora. Snyder defende o jornalismo no livro, lembrando que toda profissão é imperfeita, mas ignora que houve farta desonestidade na cobertura das campanhas. O “Fake News” criado por Trump para reagir ao processo de difamação de que foi vítima acertou em cheio o alvo. Não dá para confiar nessa mídia corrompida, ainda que Trump não seja o ícone da honestidade.

Por fim, o autor coloca a reação à globalização como responsável pelo fenômeno da tirania, tanto do lado esquerdo (comunismo) como direito (fascismo), e existe parte de verdade nisso. Tanto que alguns eleitores de ninguém menos do que Bernie Sanders passaram a defender Trump depois. O nacionalismo é fruto desse medo da globalização mesmo, e bem diferente de um patriotismo saudável. Neste, valoriza-se tudo de melhor que nossa civilização representa; naquele, ataca-se tudo de pior nos outros, com certa xenofobia.

Mas é preciso separar globalização de globalismo, algo que o autor não faz. O ataque à globalização, da esquerda à direita, é um erro; mas a condenação do globalismo, ou seja, de um “capitalismo de compadres” em escala planetária, que visa a usurpar a soberania nacional dos povos e concentrar poder em burocratas sem rosto da ONU ou em Bruxelas, além de manipular o próprio livre comércio globalizante, isso é totalmente legítimo e mesmo necessário. Trump, justiça seja feita, tem adotado a postura patriota, reforçando o legado da civilização ocidental sem pedir desculpas por ele, como fazia Obama.

Eis, então, o que quase estragou um bom livro: seus alertas sobre as ameaças tirânicas são válidos, mas os exemplos que ele dá, com clara obsessão por Trump, deixando de lado o que os democratas fizeram, quem era Obama e o papel desonesto da grande imprensa, mostram-se improcedentes e injustos. Ele acerta na parte estrutural, e erra feio no exemplo conjuntural que oferece ao leitor. Sua teoria é boa, sua análise prática é ruim.

Trump indicou para a Suprema Corte Neil Gorsuch, um “originalista” defensor da Constituição dos “pais fundadores”. Como isso pode ser fascista, e não a clara vontade de Obama e Hillary Clinton de tratar a Carta Magna como um “documento vivo” a ser interpretado “socialmente” pelos juízes engajados na causa esquerdista? A ameaça fascista existe sim, mas vem, acima de tudo, daqueles que querem concentrar no estado todo o poder para solucionar nossos problemas. Ou seja, muitos democratas que gozam do apoio torcedor de boa parte da imprensa. Esses, curiosamente, não despertam preocupação em Snyder.

PS: Outro grande absurdo no livro é o fato de o autor sequer ter a dignidade ou coragem de chamar Trump pelo nome, referindo-se a ele o tempo todo como “nosso presidente”. Postura feia num intelectual.

Rodrigo Constantino

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