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Nascer ou não nascer: eis a questão!
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“I think I see the entire world in this face. Beautiful. Loving. Murderous.” – Ian McEwan, Nutshell

Passei parte do meu fim de semana dentro de um útero. Para ser mais preciso, no útero de Trudy, esposa de um refinado e sensível poeta e amante de seu irmão, Claude, uma alma mais bruta e sexual. Ambos planejam a morte do próprio marido e irmão, para receber de herança uma velha mansão avaliada em 8 milhões de libras no mercado. Trata-se de Nutshell (“Enclausurado”), a adaptação mais do que moderna de Hamlet, feita por Ian McEwan, cujo narrador é ninguém menos do que um feto dentro da barriga!

Mas não se trata de qualquer feto. Ao escutar várias horas de podcast que a mãe deixava tocando, o jovem narrador (e bota jovem nisso) adquiriu um conhecimento espantoso sobre nosso planeta, sobre a vida humana, ao ponto de apreciar vinhos e descrever com precisão o estado de nosso mundo, assombrado por fanatismos religiosos, movimentos nacionalistas, riscos constantes de guerra nuclear e muita miséria.

Ao mesmo tempo em que destila, do desconforto de sua posição invertida e apertada, todo seu pessimismo, reconhece como este pode ser doce (“Pessimism is too easy, even delicious, the badge and plume of intellectuals everywhere. It absolves the thinking classes of solutions”). Há, também, todo um lado positivo que ele reconhece, as maravilhas que conquistamos, os prazeres de Baco, das artes e, apesar de tudo, ele parece decidido a ter seu lote de experiências, de sofrimentos e felicidades, de vida. Nascer ou não nascer, eis a questão!

Ele se enxerga inocente (“I count myself an innocent, unburdened by allegiances and obligations, a free spirit, despite my meagre living room. No one to contradict or reprimand me, no name or previous address, no religion, no debts, no enemies”), mas já faz parte de uma trama de assassinato, é, de certa forma, cúmplice passivo. Culpado, portanto. Há nele um pecado original antes mesmo de vir ao mundo.

O livro é recheado de metáforas para nossa própria vida, além de contar com partes muito divertidas. É profunda reflexão e divertido entretenimento ao mesmo tempo. A própria figura desse narrador torna tudo mais interessante, e por vezes ele aparenta estar bêbado, absorvendo o vinho pela placenta da mãe. Leva o leitor junto nessa verdadeira viagem surreal, com boas pitadas de tragédia e suspense. É digno de um Shakespeare mesmo.

Viver como homem, como ser consciente, carrega também seu fardo. Temos conhecimento de todas as desgraças, de tudo de terrível que somos capazes de fazer. Mas ainda assim é bonito ter fé para querer viver, para escolher a vida, mesmo que a de um “enclausurado”, sem tantas ilusões, mas vivo. “The beginning of conscious life was the end of illusion, the illusion of non-being, and the eruption of the real”. E desejamos o real, o sabor da vida, com todos os seus riscos. É só na realidade que podemos apreciar o gosto de um bife suculento.

Em meio ao caos, ao mundo de “som e fúria”, buscamos a beleza e o sentido, e a esperança é a última que morre. “I’m thinking about our prison cell – I hope it’s not too small – and beyond its heavy door, worn steps ascending: first sorrow, then justice, then meaning. The rest is chaos”. É a parte do sentido que nos interessa, que nos eleva como seres humanos, para além da pura sobrevivência animal, dando vazão a nossos instintos e apetites mais brutos.

Qual a alternativa? Não viver! Não ter sua cota de experiências conscientes, de dores e também de prazeres refinados. Fazer parte do “teatro da vida” pode ser um tanto cansativo, mas ainda é muito melhor do que não fazer parte dele: “If hypocrisy’s the only price, I’ll buy the bourgeois life and consider it cheap”. Ao menos existem os vinhos – e a boa literatura – para tornar tudo mais agradável e palatável…

Rodrigo Constantino

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