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No fio da navalha: biografia de José Júnior, do AfroReggae, é atestado de fé e esperança no homem
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Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança. – Alerta na entrada do Inferno de Dante

O livro é bom e recomendo. Escrito pelo jornalista Luis Erlanger após inúmeras conversas gravadas, a biografia de José Júnior, fundador da ONG AfroReggae, confunde-se com a história do crime no Rio de Janeiro, por alguém que viveu os principais momentos de dentro, não como cúmplice, mas como um mediador em busca de “almas resgatáveis”.

O trabalho de Júnior e da AfroReggae retirou várias pessoas do mundo do crime. É um empreendedorismo social louvável, que contou com o importante apoio do grupo Globo, segundo o próprio. Levar música e cultura para onde antes só havia miséria e tráfico de drogas representou uma iniciativa admirável com o poder de mudar, para melhor, muitas vidas. Mas Júnior não alivia a barra dos bandidos:

Eu não fico: “Pô, cara. Eu te entendo…” É assim: “Tenho que entender? Você mata os outros e tenho que entender? Vende drogas para crianças e tenho que entender? Você fode a vida dos outros e tenho que entender?” É assim que faço mediação.

Júnior mantém a fé na capacidade de mudança de muitos criminosos, e ele já conseguiu recuperar alguns. Diz que acredita que todo ser humano, por pior que possa ser, “tem uma centelha boa, e, como Luke [Skywalker], eu foco e tento trazer isso para fora”. É a Síndrome do Darth Vader, segundo o empreendedor social. Mas essa esperança no homem, ainda que bandido, não o faz aliviar a barra dos criminosos, tampouco demonizar a polícia:

Foi uma grande quebra de paradigma, porque a gente fala muito do preconceito do policial com o jovem preto e pobre da favela, mas esse jovem também tem preconceito com o policial. As pessoas falam mal da polícia, mas é para ela que ligam quando precisam. É verdade. Não importa o problema. Não estou aqui justificando ou tampando os problemas da polícia, como os casos de abusos, violência ou corrupção.

Quando o AfroReggae passou a incluir policiais em seus programas sociais, foi alvo de muita desconfiança nas comunidades, mas acabou dando certo. A postura de Júnior fica entre a da esquerda que encara bandido sempre como “vítima social” e polícia como “fascista”, e a da direita que repete apenas que “bandido bom é bandido morto”.

Há salvação para alguns marginais, e há policiais corruptos, truculentos e que abusam do poder. Isso não torna todo bandido uma “vítima da sociedade”, pois eles escolhem essa vida, e também não torna todo policial um corrupto. É preciso separar o joio do trigo, em ambos os casos.

As histórias relatadas no livro parecem, em alguns casos, surreais. Mas, sabendo como é a vida louca de muito carioca nas favelas, elas são ao mesmo tempo críveis. Júnior estava preparado para morrer desde cedo e nunca achou que passaria dos 16 anos. De fato, viu quase todos os seus amigos morrerem no caminho. Sente-se protegido por deuses, santas e espíritos. Ilustra com perfeição a máxima de Nelson Rodrigues, de que o brasileiro acredita em cinco religiões ao mesmo tempo.

Sua postura é apartidária, e se dá bem com gente de todo espectro político. Gosta de Marcelo Freixo, por exemplo, mas fez campanha para Aécio Neves. Sua marca registrada é mesmo a lealdade pessoal, valor que tem como um dos mais caros. Um episódio em sua infância lhe marcou profundamente nesse sentido. Há vários relatos que ilustram essa postura, como este:

Sou o tipo de cara que faz questão de entrar no navio que pode afundar mesmo estando do lado de fora. Eu me sinto um pouco Highlander. Se estou com um cara, vou com ele até o fim.

A forma corajosa com a qual se abriu nos depoimentos, inclusive sobre coisas muito pessoais, como as experiências que teve “comendo viados” na juventude, torna o livro bem interessante e, claro, politicamente incorreto. Júnior adota uma transparência que não combina com o excesso de preocupação com a imagem do típico “poser” de internet de hoje em dia, aquele que desde os 12 anos só pensava em salvar baleias e crianças africanas e comer capim e tofu orgânico.

Júnior teve uma vida extremamente intensa até aqui. Corajoso e sonhador, lutou para tirar marginais do mundo do crime, colocando sua própria vida em perigo no processo. Precisa andar cercado de seguranças do Bope hoje em dia, com ameaças de morte pairando sobre sua cabeça. Como diz Arminio Fraga, Júnior “é um desses heróis que a gente só imagina em filme”, apesar de a frase da epígrafe do livro ser aquela famosa de Brecht: “Pobre do povo que precisa de herói”.

Mas creio que todos precisam. E se esmiuçarem bem, ninguém resiste completamente ao exame minucioso, pois somos todos criaturas imperfeitas. O que vale mais são os mitos fundadores, o simbolismo. E, nesse aspecto, Júnior não tenta bancar o super-herói, e sim alguém destemido que mantém uma incrível esperança na capacidade de redenção do ser humano, por pior que ele seja.

Essa é uma ideia nobre, por mais que eu, pessoalmente, considere sua relação com certos criminosos próxima demais. Não conseguiria ser “amigo” de quem julgo monstruoso, e não acho que teria condições de alimentar muito otimismo em relação à sua capacidade de mudança. Mas padres e pastores decentes adotam exatamente essa abordagem, e já converteram muitos pecadores.

Júnior, pelo caminho pragmático do empreendedorismo social, também. É bom que alguns o façam, pois como sua trajetória demonstra, há sim casos que pareciam perdidos e se mostraram recuperáveis. Ainda que, para mim está claro, o trabalho social será como enxugar gelo caso as causas estruturais da criminalidade não sejam atacadas.

Elas seriam, em minha opinião, a impunidade, os valores e o núcleo familiar destroçados, e somente depois a educação e a falta de oportunidades. O que vemos é que muitos bandidos escolhem essa vida, às vezes por motivos mesquinhos, por desejarem o poder na comunidade, o tênis da moda. Júnior tenta lhes mostrar que há um caminho alternativo, que a vida pode ser bem melhor no lado honesto, com trabalhos lícitos e paz de espírito. Quando ele consegue, ótimo; quando fracassa, que a lei se faça cumprir.

PS: O lançamento no Rio será na segunda-feira agora, dia 14 de dezembro, na Livraria Travessa do Shopping Leblon, às 19h. E em São Paulo será terça, dia 15, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista), também às 19h.

Rodrigo Constantino

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