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Quem é Elena Ferrante? Ou: A novela napolitana que conquistou o mundo
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Devorei as mais de 1500 páginas dos quatro volumes da novela napolitana de Elena Ferrante no último mês, e terminei neste domingo. Foram 30 dias em que estive imerso neste universo paralelo, em que fui transportado para uma Nápoles de meio século atrás, pobre e dominada pela máfia, numa história envolvente de duas amigas que lutam para superar o destino geográfico, da classe social, da falta de educação e perspectivas.

Essa amizade – ou obsessão até – dura décadas, atravessa inúmeras fases distintas, transforma-se no caminho. E o leitor permanece grudado ao livro, acompanhando a história fantástica de Lila e Lenu, sofrendo com elas, sonhando com elas, torcendo por elas, revoltando-se com algumas de suas decisões, vibrando com outras.

Mas o livro de Elena Ferrante é muito mais do que uma história de amizade. É uma narrativa apaixonante que sai do concreto e do local para o abstrato e o universal, como fazem os grandes escritores, eternizando emoções e paixões, mergulhando na natureza humana atemporal, em suas fraquezas e forças, nas armadilhas que o destino prega, nos perigos das escolhas irrefletidas que fazemos. E há salvação?

A novela napolitana conquistou o mundo, primeiro com um público predominantemente feminino, e agora seduzindo geral. É sucesso merecido: trata-se de boa literatura mesmo, de um deleite do começo ao fim. A Camorra napolitana, os socialistas revolucionários que pretendem enfrentá-la e trazer justiça ao mundo, o próprio viés esquerdista da narradora: não importa sua visão política de mundo, pois o que vale é uma ótima história bem contada. E isso o livro tem, de sobra.

Quem me recomendou a leitura foi um amigo conservador e totalmente antiesquerdista, mostrando como o apreço pela boa literatura está acima das ideologias. Aliás, eis o que costuma ferrar com uma obra de arte: a tentativa de politizar toda a mensagem, de reduzi-la a um panfleto partidário. Não é o que ocorre na novela de Ferrante. Longe disso!

O conflito entre os socialistas e os fascistas serve apenas como pano de fundo, como cereja do bolo, como algo que enriquece o cenário da trama. O feminismo idem: é um tema relevante, mas paralelo ao essencial. São as relações humanas o foco da novela, a amizade, o amor, a paixão, o desejo, a vocação, a própria escrita como fuga não apenas de uma realidade concreta de miséria e ignorância, como superação da sua classe social, mas principalmente como fuga para a falta de sentido do mundo. Se ele não basta, se ele tem muita desgraça e feiura, então a literatura está aí para nos permitir criá-lo novamente, no campo da imaginação. E com isso torná-lo mais palatável, mais tolerável.

Lila é uma das personagens mais interessantes já criadas, e por mais que seja inspirada em alguém de carne e osso, a autora sem dúvida acrescenta complexidade e fascínio ao seu molde real. Sua determinação, sua beleza, a energia que dela emana, a impossibilidade de ignorar sua presença, a força de seu espírito, essas são marcas impressionantes que página após página saltam aos olhos, a ponto de a narradora desenvolver por ela verdadeira obsessão. Mas há um misto de paixão e ódio, de inveja e admiração, que acompanha o relacionamento delas ao longo das décadas. E é essa simbiose que torna tudo tão fascinante.

E Lila finalmente desaparece. Não é spoiler: a história começa assim, com seu desaparecimento já em idade avançada. Mas desaparecer desse mundo cruel e sem sentido foi algo que, pelo visto, sempre esteve na cabeça dela, como quando descreveu o que seriam as tais “fronteiras dissolventes” (“dissolving boundaries”), uma sensação de que nada é concreto, de que as extremidades não são sólidas como aparentam, que tudo pode simplesmente explodir do nada.

Os psicanalistas falariam talvez do “real”, de algo inominável ou mesmo incognoscível, mas que pode surgir de repente e sacudir todo o nosso universo, nossas crenças, nossos amuletos que servem para manter alguma segurança. Como um terrível terremoto, ou a imagem de um familiar agindo como uma besta selvagem sem controle, ou o desaparecimento de uma filha.

Aí o desamparo é pleno, e nos vemos andando em solo pantanoso, ou em solo algum. Lila é personagem bem trabalhada por nos oferecer os dois extremos: a vontade indômita de uma mulher obstinada, e ao mesmo tempo a criança desamparada, frágil, pronta para sucumbir, desaparecer. É essa complexidade que torna o livro tão interessante, além da história bem bolada, dos amigos de infância que crescem, cada um seguindo numa direção, alguns não indo em direção alguma.

Há um grande mistério envolvendo a Itália e o mundo hoje, no que diz respeito à literatura: quem é Elena Ferrante? Um jornalista investigativo diz ter a resposta: trata-se de Anita Raja, uma tradutora filha de um judeu polonês e uma mãe napolitana. Analisando pagamentos feitos pela editora, o jornalista chegou à resposta tão procurada. Mas o que importa a verdadeira identidade da autora? Elena Ferrante, pseudônimo, Elena Greco, a personagem narradora, ou Anita Raja: o nome aqui não é o mais importante.

É verdade que por trás de um nome há toda uma história, um legado, um passado que de certa forma influencia muito o presente e, por tabela, o futuro. Mas não é a Elena ou a Anita real que gera tanto fascínio: é a narradora e sua história, contada de forma tão espetacular. Tenho certeza de que muitas Elenas e Anitas tiveram vidas interessantes por aí, em Nápoles, em outras cidades.

Mas a literatura não é um relato jornalístico. E por mais que certas pessoas tenham vivido vidas bastante fascinantes, a beleza da arte está justamente em superar a realidade, em transformá-la, em usar estratégias de narração para transportar o leitor a um mundo paralelo, diferente, que apenas imita a verdade, mas com espaço para que o autor dê asas à sua imaginação. E é ela que faz toda a diferença.

Rodrigo Constantino

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