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Sub-humanos: o processo de desumanização que leva ao genocídio
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Quando alguém se comportou como um animal, ele diz: ‘Ora, eu sou só um ser humano!’ Mas quando é tratado como animal, ele diz: ‘Ora, eu também sou um ser humano!’ (Karl Kraus)

Desde que o homem é homem ele escraviza e até extermina grupos inteiros de outros seres humanos. O típico pensamento tribal de “nós contra eles” parece enraizado em nossa espécie, e o preconceito e a xenofobia acabam alimentando um desprezo por determinados grupos étnicos, sociais ou religiosos. Às vezes, essa visão chega ao extremo do genocídio. Isso é possível porque as vítimas são tratadas como se fossem de outra espécie, animais inferiores, sub-humanos. O que explica isso? Como tentar mitigar esse risco?

São perguntas que David Livingstone Smith procura responder em seu excelente Less Than Human: Why We Demean, Enslave, and Exterminate Others. Aqueles considerados sub-humanos não possuem, pela ótica de seus detratores, aquela coisa especial que não é fácil de explicar, mas que nos torna humanos. Por conta desse déficit, não desfrutam do respeito que normalmente estendemos a toda nossa espécie.

Podem, assim, ser escravizados, torturados ou mesmo exterminados sem que a consciência pese tanto. Quem age assim não se sente atacando outro ser humano, e sim um bicho inferior. Por isso que mesmo pensadores iluministas, de cima de sua Razão e com forte apreço pelas liberdades individuais, deixaram negros de fora dos “direitos universais”. Você pode acusar os “pais fundadores” da América de hipocrisia, mas na verdade eles simplesmente não enxergavam aqueles escravos como gente igual, como outro ser humano merecedor dos mesmos direitos.

Esse processo de desumanização é o assunto do livro de Smith. Como ele ocorre? Para o autor, o tema, que é da maior importância, tem sido negligenciado por muitos pensadores, e faltam estudos mais aprofundados sobre ele. Foi para iniciar esse debate que Smith escreveu o livro, bebendo da história, da psicologia, da filosofia, da biologia e da antropologia. Quais são as forças e os mecanismos que sustentam esse processo de desumanização, que pode ser observado em várias épocas e por todo lugar?

Sim, antes que os “movimentos de minorias” anti-ocidentais fiquem animados, vale notar que esse processo é bem antigo e não faz distinção entre povos. A desumanização não é exclusividade da Europa, tampouco da era moderna. Era uma prática disseminada, antiga, profundamente arraigada na trajetória de nossa espécie, o que derruba uma visão mais “construtivista” do fenômeno. Ele parece, infelizmente, mais natural do que gostaríamos de aceitar.

A cultura, portanto, tem muito a acrescentar, para pior ou melhor, mas estamos lidando com algo biológico também, o que não deve ser desprezado. A desumanização se dá quando certos seres apenas aparentam humanidade, mas por baixo da superfície, não são vistos como humanos em sua essência. Claro que ela se alimenta do racismo: sem ele, a desumanização não existiria. Ela é uma forma de pensar que, infelizmente, floresce em nós com mais facilidade do que admitimos.

Preferimos crer que somente monstros seriam capazes de certos atos, mas o autor contesta essa visão. São “monstros” no sentido que abandonaram justamente seu lado humano benevolente, que tem empatia pelo próximo. Mas continuam seres humanos. O animal homem, afinal, possui essa ambiguidade, essa dualidade. É capaz de atos de extrema generosidade e altruísmo, mas também é capaz das maiores atrocidades.

E fechar os olhos para a possibilidade de que tais crueldades poderiam ser praticadas por quase qualquer um, dependendo da circunstância e do processo de lavagem cerebral, pode ser uma visão confortante, mas não necessariamente será verdadeira. Por isso a desumanização é mais comum na história do que gostaríamos. Ela é um lubrificante psicológico que dissolve as inibições morais e inflama paixões destrutivas. Dessa forma, ela leva as pessoas a agirem de uma maneira que, em situações normais, seriam impensáveis.

Todos sabem, no fundo, que é errado matar uma pessoa. Mas e um rato? E exterminar um vírus perigoso? E caçar uma presa natural? E combater uma praga ameaçadora? E se livrar de um bicho peçonhento e asqueroso? Para quem coloca em prática atos de extermínio, é uma dessas visões que prevalece do alvo: ele deixa de ser outro ser humano e passa a ser um animal inferior. Há farta documentação que comprova que era exatamente assim que os nazistas enxergavam os judeus. O Holocausto é o caso mais absurdo de genocídio, um dos mais nefastos. Mas não é o único.

Nada disso justifica ou relativiza a barbárie nazista. Ao contrário. O mais desconcertante é que não eram todos monstros. Várias pessoas comuns, que em outras esferas da vida levavam vidas aceitáveis ou mesmo decentes, endossaram o nazismo. Eram seres humanos, e isso é o mais chocante e assustador. Foi o fato de realmente verem suas vítimas como ratos, não mais como seres humanos, o que permitiu que tanta gente aceitasse a “solução final” de Hitler. Ou a “limpeza” feita pelo Khmer Vermelho no Camboja, que exterminou um terço da população.

O livro relata inúmeros caos de linguagem utilizada para a desumanização de inimigos. Militares adoram se referir a seus alvos com metáforas de animais. Muitas vezes são mais do que apenas metáforas; é como realmente enxergam os outros. Os soviéticos encaravam os kulaks, pequenos proprietários, como vermes. Os comunistas do Khmer Vermelho, mencionado acima, viam suas vítimas como “macacos”. Os japoneses viam seus inimigos como demônios, espíritos malignos, monstros. Soldados americanos se referiam aos inimigos japoneses como “cães”.

O grau de barbaridade a que o homem é capaz de chegar impressiona. São relatos medonhos, de crianças mortas como se fossem formigas, de mulheres estupradas como se fossem descartáveis. O autor conta alguns episódios de embrulhar o estômago. Mas eles aconteceram mesmo. E com mais frequência do que pensamos. Por trás desses atos está o processo de desumanização que o torna possível. À exceção de psicopatas, ninguém agiria dessa forma tão brutal. Mas muitos agiram. Muitos agem, especialmente em guerras. É porque enxergam os inimigos como não-humanos.

A retórica militar em nada ajuda. Na verdade, ajuda a aumentar o problema. Pessoas comuns se tornam monstros com total descaso pela vida humana, exatamente porque não mais a veem como humana. A desumanização é fomentada pela propaganda. Antes do genocídio em 1994, por exemplo, os Tutsis eram caracterizados como “baratas” pelas rádios na Ruanda. Não é preciso falar da propaganda nazista ao retratar os judeus como terríveis bichos inimigos do povo alemão, que alastravam doenças fatais.

A imensa maioria dos seres humanos hesitaria em matar ou torturar outro da mesma espécie. Mas esses escrúpulos se perdem quando estamos diante não mais de outro ser humano, e sim de uma ratazana ou de uma cobra. Ao retratarmos os outros como animais perigosos ou parasitas, tal retórica se mostra perigosa, pois mexe com nossos medos mais profundos. Tais técnicas de discurso incentivam o terror e fecham nossas mentes. Se um conflito internacional é explicado como a luta contra criaturas sub-humanas que nos ameaçam, então nenhuma análise extra se faz necessária: é preciso exterminá-los.

Desumanização não é o mesmo que objetificar uma pessoa, como feministas acusam os homens de fazerem com as mulheres. É realmente enxergar o outro como sub-humano, como desprovido da essência que nos torna seres humanos. É algo psicológico, que ocorre em nossas mentes. É uma atitude, uma forma de pensar, de ver o mundo. E é algo antigo, que desde os gregos temos documentado, mas que vem de muito antes. Na hierarquia mental que construímos para analisar o processo evolutivo, a desumanização ocorre quando alguns são vistos como se num estágio inferior de desenvolvimento. Não são humanos, ainda.

As pessoas mais “esclarecidas” do mundo ocidental hoje entendem que todos nós somos homo sapiens sapiens, detentores da racionalidade como instrumento cognitivo. Mas a desumanização ocorre num estágio mais instintivo. São impulsos que podem se sobrepor às convicções intelectuais. Vêm de uma força mais atávica e tribal presente em nós todos, e com a devida manipulação retórica, podem anular a visão mais racional da coisa. Dependendo da circunstância, a besta humana em nós pode falar mais alto do que o ser racional civilizado.

Os estrangeiros, os “outros”, acabam muitas vezes vistos com desconfiança. A essência do racismo – a noção de que populações inteiras possuem um defeito de caráter inato – tem sido parte da cultura humana por muito tempo. Os “bárbaros” são vistos como animais brutos, incapazes de apreender nossa cultura superior. A cultura medieval islâmica, por exemplo, via os negros africanos como estúpidos, preguiçosos e sujos. Não foram poucos os intelectuais ocidentais que também adotaram visão preconceituosa contra eles.

Reconhecer essa tendência natural é talvez o primeiro passo para tentar contê-la ou mitigá-la. Os românticos preferem crer no homem como uma “tabula rasa”, como um “bom selvagem” pronto para ser educado como os “engenheiros sociais” aprouverem. Não é assim que funciona, e uma abordagem realista é fundamental para não alimentar ilusões infantis. O animal homem, como seus parentes chimpanzés, gostam da violência e adotam postura tribal contra “os outros”, o que teve inclusive vantagens evolutivas. Ao mesmo tempo, somos capazes de sentir empatia pelo próximo. Somos seres ambivalentes.

A desumanização é extremamente perigosa justamente porque oferece ao cérebro os meios pelos quais podemos superar as restrições morais contra os atos de violência. Ao verem comunidades inteiras como sub-humanas, os humanos driblam essa ambivalência e podem, agora, exterminar seus inimigos sem remorso, como quem elimina um germe. O processo de desumanização ocorre em situações em que desejamos agredir determinado grupo, mas somos contidos por inibições morais. Isso se dá num nível emotivo, não estritamente racional.

Como efetivamente conter tais impulsos? O autor não oferece um manual. Ele reconhece que não é algo tão simples assim, que não basta “contar histórias boas”, ignorando a questão sobre nossa natureza humana. Mas sem dúvida em nada ajuda a retórica tribal de “nós contra eles”, que retrata “eles” como bichos tidos como inferiores. As “metáforas” que usamos para descrever nossos adversários como ratos, como insetos, como vermes que devem ser eliminados, não contribuem muito para a vitória da civilização sobre a barbárie. São perigosas, para dizer o mínimo.

Apontemos os erros, os absurdos de nossos adversários. Reconheçamos a monstruosidade de certas ideologias. Ataquemos o comunismo, o socialismo, o nacional-socialismo, o fascismo, o radicalismo islâmico. Mas tomemos o cuidado de não transformarmos seus seguidores em bichos sub-humanos, que precisam ser exterminados. São, apesar de tudo, seres humanos. Apesar de, no mundo moderno que muitos deles ajudaram a criar, talvez seja mais valioso ser considerado um animal mesmo, já que seres humanos estão em baixa na escala de valores.

Rodrigo Constantino

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