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Cada vez que vê uma escavadeira em movimento no Centro da cidade e arrabaldes, o arqueólogo Ygor Chmyz, 69 anos, sente embrulhos no estômago. Máquinas e homens trabalhando são sinal de que alguma herança da Curitiba antiga pode estar sendo triturada e varrida da história para dar lugar a supermercados, shoppings e até binários. Por enquanto, nada pode ser feito. A legislação que prevê o salvamento do patrimônio arqueológico e arquitetônico da capital – o decreto municipal 1.160, de 1971 – é obsoleto e se ocupa dos bens históricos construídos e reconhecidos como tal, criando uma barreira inglória para quem precisa cavucar a terra em busca de ossadas, cerâmicas e afins.

"Muito material arqueológico importante pode estar se perdendo com essa revitalização da Marechal Deodoro. O mesmo acontece na área do Shopping Palladium (no Portão)", protesta Chmyz, lembrando que, com o crescimento das cidades e com intervenções cada vez mais definitivas e profundas, está-se diante das últimas oportunidades de vasculhar o solo de Curitiba.

Chmyz e sua pequena equipe da UFPR – formada por cinco pesquisadores – bem que tentaram reverter a situação, lembrando a torto e a direito que uma louça colonial em frangalhos ou uma sobra de parede soterrada podem deixar de canelas para o ar umas tantas certezas sobre o passado. Há sete anos, o arqueólogo, em parceria com o pesquisador Laércio Loiola Brochier, redigiu um artigo de 26 páginas no qual defende um zoneamento arqueológico para o município. Quase um manifesto, o documento é rico em inventários, mapas e estatísticas e não deixa dúvida de que Curitiba guarda um vasto campo arqueológico por baixo de seus 430,9 quilômetros quadrados.

Mesmo sendo uma mão na roda, o trabalho não mexeu uma palha na maneira como o poder público lida com o patrimônio não aparente. Esse silêncio é duplamente escandaloso – por colocar em risco o patrimônio arqueológico e por dar as costas ao legado de Igor Chmyz. O pesquisador soma mais de quatro décadas de serviços prestados ao setor de arqueologia e responde pela catalogação de nada menos do que 2 mil sítios no estado. Seu nome figura entre os grandes da arqueologia brasileira – mas comumente é reduzido ao sujeito bom-de-briga que toca um samba de uma nota só: o zoneamento.

O supervisor de Planejamento do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), Ricardo Antônio Bindo, afirma que a prefeitura reconhece a relevância da proposta do grupo de Chmyz e que a cidade se encaminha para uma política mais agressiva de resgate do patrimônio arqueológico. A palavra zoneamento, contudo, é usada com cerimônia ou substituída por política, talvez porque a principal pergunta ainda não foi respondida: de onde a onde seria obrigatório fazer prospecção arqueológica na capital antes de se iniciar uma obra? O levantamento de Chmyz é bastante detalhado, pode responder a maioria das dúvidas, mas sua aplicação tende a provocar resistência, principalmente do setor imobiliário, que costuma associar arqueologia a atraso nas obras e aumento de custos.

Neste semestre de 2007, quando a prefeitura der início a um debate popular sobre o Plano de Meio Ambiente de Curitiba, o assunto vai voltar à baila e promete temperaturas altas. A redação final deve ser aviada em outubro. Até lá, permanece a ausência de obrigatoriedade de escavação arqueológica, salvo em obras de grandes extensões, que passam por estudo de impacto ambiental e tendem a exigir a intervenção de especialistas, como os trabalhos da Linha Verde, zona que vai do Atuba ao Pinheirinho. Em 2007, os arqueólogos da UFPR devem trabalhar em área da Petrobrás, em São Mateus do Sul.

Tudo indica que as discussões em torno do Plano de Meio Ambiente vão aposentar o decreto de 1971, passando a exigir prospecção total em áreas menores que sejam de interesse histórico – na casa dos 2 mil metros quadrados – e amostragens para áreas maiores – com cerca de 5 mil metros quadrados. Além das regiões mais centrais, cuja ocupação remonta ao século 17, Bindo imagina que entrem para o mapa arqueológico as zonas ribeirinhas, como as do Rio Bacacheri e Rio Iguaçu, tradicionalmente endereço de ocupações em séculos a perder de vista.

A carta de intenções informal da prefeitura, contudo, não muda o rumo da prosa. A arqueologia permanece ameaçada pela invisibilidade e pela ausência de exemplos positivos. A legislação federal é de 1961 e somente nos anos 80 se tornou obrigatória em grandes intervenções, conforme determinações do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Difícil encontrar quem conheça uma política pública mais favorável nessa ou naquela região do país. "Talvez Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. No Rio não se abre uma valeta sem que haja averiguação de um arqueólogo", diz Chmyz sobre as capitais em que as prospecções são uma atração turística tanto quanto o Pelourinho ou o Mosteiro de São Bento. Tomara se possa fazer o mesmo na cidade que um turista desavisado resumiria à Ópera de Arame e ao Jardim Botânico.

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