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Eloyr (à direita) com suas afilhadas na escadaria do colégio: novidade a borde de um Delphini | Nereida Dias/Divulgação
Eloyr (à direita) com suas afilhadas na escadaria do colégio: novidade a borde de um Delphini| Foto: Nereida Dias/Divulgação

Rosário dos dias no Colégio do Cajuru

"Colégio do Cajuru": O nome oficial era Colégio Nossa Senhora de Lourdes, mas o nome do bairro acabou identificando a instituição – era o "Colégio do Cajuru". Por quase um século sob cuidados das irmãs de São José de Chamberry, de origem francesa, o local atendia em regime de externato, semi-internato e internato.

Passaram por ali a escritora Edla Van Steen, a primeira dama Flora Munhoz da Rocha, a escritora Maria Tereza Brito de Lacerda, para citar três expoentes. De 1907, quando iniciou, aos anos 1960, a francesa Eugénie Jarre, a mère Julia, esteve à frente do colégio, imprimindo sua marca em gerações de mulheres paranaenses.

O prédio, imponente, no alto da Avenida Capanema, está hoje aos cuidados do Colégio Bom Jesus, e mantém o nome "Lourdes". Em tempos idos, três ônibus – em cores diferentes, para marcar a região da cidade em que circulavam – enfrentavam a distância para chegar até o local, em estrada de chão. "Sacolejava bastante", dizem as ex-alunas. Do portão para dentro, era como estar na França. Ao cruzar com as freiras, ouviam "bon jour ma petite", ao que deveriam responder "bon jour ma soeur".

Rigores: Pelos corredores do Colégio Nossa Senhora de Lourdes havia uma placa com a inscrição "Deus vê tudo". "Havia inclusive uma no banheiro", lembra, com humor, a professora Araci Asinelli da Luz, da UFPR. "Era uma inscrição onipresente", contam. A vigilância divina se estendia à vigilância nos claustros do colégio. "As irmãs queriam que a gente tomasse banho de calcinha", conta a educadora Neusa Schult. Em determinada época, inclusive, o enxoval das internas incluía a peça "camisola para banho" – o que costumava causar rejeição.

Os diretórios internos impediam as internas de dormirem de bruços, de modo a garantir a prática da castidade. "Uma gracinha na fila e perdia a saída de domingo. Eu vivia de castigo. E fugi algumas vezes", lembra a ex-interna Marília Guimarães, da família do jornalista Acyr Guimarães e do psiquiatra Alô Guimarães.

Um dos lugares mais visados pelas alunas era a clausura das freiras, na qual era proibido entrar. No início da década de 1960, a semi-interna Diana Zippin aproveitou uma distração das religiosas e entrou no espaço reservado. Uma das freiras, ao flagrá-la, mostrou os quartos (celas) com o catre, filtro de barro e o crucifixo. "Era tudo muito simples". Como castigo pela transgressão, Diana ajudou a irmã Marie Andree a carregar livros de chamada por alguns meses.

À mesa: internas e semi-internas do Colégio do Cajuru não lembram com muita saudade das refeições feitas no local, cujo cardápio era afinado com as práticas de mortificação. A salada de fruta se resumia a pedaços de mamão e banana. O dia de bife de fígado provocava engulhos estomacais em massa, ao que as irmãs recomendavam: "Ofereçam para Jesus". Em dia de festa havia bife à milanesa. "Em dias comuns, o bife era duro, pois as cozinheiras fritavam às sete da manhã e jogavam água até o meio-dia, quando eram servidos", diverte-se Diana Zippin, ao se referir às populares "solas de sapato", das quais reclamou às madres. Milagrosamenre, foi atendida. De família judia, Diana "tinha mais tempo para aprontar", como diz, pois não era obrigada aos serviços religiosos. "Eu tinha sempre um pacote de bolacha escondido".

Para não dizer que não falam das flores, as ex-alunas suspiram ao lembrar o cheiro de pão de casa, que entrava pela sala de aula, às quatro da tarde. E dos pirulitos distribuídos pelas irmãs, o sucre d’orge. As ex-alunas são unânimes: esses verdadeiros torrões de açúcar lhes adoçou a mocidade.

"Direito de nascer": a vida reservada das irmãs de São José de Chamberry, congregação que administrava o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, mexia com o imaginário das alunas. Funcionavam como um novelão de rádio, gênero bastante popular à época. Fantasiavam os segredos de mulheres que carregavam nomes inspirados, a exemplo da irmã Felicité. O caso mais contado é o da irmã Rosa Teresa do Menino Jesus. Ao se desligar do convento, foi ajudada pela família rica de uma aluna. "Eles compraram roupas para ela na loja Emily do Juvevê", lembra a dentista Nereida Hessel. "Quando a vimos sem véu foi um espanto. Os cabelos dela eram cinzas. Há muito não viam o sol". De nome Eugênia, hoje Rosa Teresa vive nos Estados Unidos.

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  • Detalhe do texto escrito por Eloyr Blanck para suas alunas. Mensagem fala nos
  • Detalhe do texto escrito por Eloyr Blanck para suas alunas
  • O professor Eloyr Blanck antes do jantar da confraternização de 2014: um marco nas páginas da educação
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  • Foto de arquivo – estudantes da turma de 1962 rezam na capela do

"Meninas, atenção", grita a dentista Nereida Hessel Dias em meio ao encontro anual das ex-formandas do ginásio do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, o "Colégio do Cajuru", como ficou conhecido. É hora de ler o discurso feito pelo professor Eloyr Blanck – paraninfo da turma. O silêncio de catedral impera, prova de que elas continuam gurias do internato de freiras, 52 anos depois de terem tomado seu rumo. Uma parte do texto chama a atenção: "... e mesmo quando sobrarem apenas duas de vocês, continuem se reunindo", escreve o mestre, repetindo o pedido que faz a cada reunião, desde que essa história começou.

SLIDESHOW: Confira imagens de Eloyr Blanck

Confraternizações de ex-alunos deixaram há muito de ser uma novidade. Acontecem a todo tempo e em cada canto, graças às redes sociais. Mas esse caso é diferente. A formatura ocorreu em 1962. Eram 60 alunas, turmas A e B. Vinte anos depois, em 1982, Nereida promoveu o primeiro reencontro. Foi um acontecimento – a organizadora, afinal, contou unicamente com a coragem e os préstimos de uma lista telefônica. "Liguei para 300 Baggios, atrás de Alba. Não sabia o nome dela de casada", conta a respeito de Alba Demeterco, que viria a se tornar sua parceira na empreitada.

Deu certo. Há 32 anos, é sagrado – fim de ano, elas se põem arrumadas e se reúnem. Trocam presentes. Riem de si mesmas ("Meu Deus, é você mesma?"). Reviram as memórias. Fazem o balanço das perdas – em meio século algumas perderam casamentos, fortunas, maridos e a beleza. Só não perderam o professor de Português, Eloyr Blanck. Esse é o ponto. Grupos de "ex" são muitos. Com professor a tiracolo, raros. Diante do mestre, as participantes (hoje entre 66 e 70 anos) ainda se sentem aos 15, trajando o pesado uniforme azul marinho do "Cajuru". Para coroar o revival, Blanck as trata por "meninas". Aviso: não as chamem de senhoras ou donas. Não nesse dia.

Três "cês"

O vínculo de Eloyr com suas alunas de ginásio merece figurar nas mais belas páginas da educação. "Elas têm a mim como o pai que a maioria já perdeu. E são as filhas que não tive", interpreta. Faz sentido. Curitiba tinha 360 mil habitantes quando essa turma concluiu o ginásio. Eram adolescentes numa cidade acanhada. "Tudo se resumia a três ‘cês’ – o Cajuru, o Curitibano e Caiobá", brinca a veterana Vera Maria Schettini. Graças. À época, algumas convidaram Blanck para dançar na festa de debutantes, para o casamento, para o batizado dos filhos. Pediram conselhos. Em 1982, quando os encontros anuais começaram, muitas tinham o telefone do educador na agenda – ele era da família.

O intrigante é que essa rede poderia ter se formado com qualquer outro. Por que ele? Tudo começou em 1960. Ao chegar em casa, do trabalho, a mãe de Eloyr avisou que havia duas freiras a sua espera na sala. Eram irmãs de São José de Chamberry. Solenes, usavam longo hábito preto de lã, sem um fio de cabelo à mostra. Não raro, mesmo se nascidas no Abranches, ganhavam nomes franceses depois de fazerem os votos. Naquele dia, estavam ali Marie Andree e Marie Felicité. Queriam convidá-lo para lecionar no Nossa Senhora de Lourdes, colégio que desde os anos 1910 educava a nata paranaense.

Estranhou a proposta – homem, jovem e ainda por cima solteiro, tinha tudo para "não" ser contratado. Em francês lustroso, perguntou às religiosas se não haveria impedimento. Riram. O Concílio Vaticano II começaria somente dali um ano, mas as duas não se acanharam em dizer que "aquilo era passado". Em pouco tempo, o alto, educado e eloquente Eloyr Blanck atravessou a Avenida Capanema e estacionou seu Delphini azul na porta do liceu paranaense que rivalizava com o Sion em importância.

"Cheguei lá com um propósito. Seria ali o que eu era em qualquer lugar. E queria ser amigo das alunas", conta. As gurias viram logo que o novato trazia oxigênio. No início da década de 1960, o Colégio do Cajuru resistia, em vão, às mudanças que varriam o planeta. Mère Julia – a madre francesa que conduzira a instituição desde o início – estava idosa. De dama de ferro, reduzira-se a uma idosa sentada no pátio, com um "radinho" de pilha grudado às orelhas.

O Cajuru de mère Julia permanecia sinônimo de educação rigorosa, mas nada que impedisse as alunas de ouvir Elvis Presley e de esconder livros proibidos na parte debaixo da carteira, para lê-los durante as aulas chatas. Não deixa de ser simbólico – a superiora morreu em 1962, o ano em que o primeiro solteiro a lecionar ali se tornou paraninfo de uma turma recheada de sobrenomes graúdos. Ele atendia o que as gurias esperavam de um professor da era Kennedy, dos direitos civis dos negros, da corrida espacial. Como não fugiu à luta, ganhou lugar cativo no álbum de retratos e na caderneta de endereços de todas elas.

"Eu tinha a fama de que as defendia. Na verdade, ouvia os dois lados", conta. A empresária e artista plástica Diana Zippin diz que é lorota. "Ele peitava mesmo". É lendário o exercício de literatura brasileira pedido por Eloyr. A escolha do título era livre. Ela escolheu Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, autor que pontificava o índex do Cajuru. Para piorar, a aluna desenhou na capa do trabalho a generosa heroína baiana, com os seios de fora.

"Decidiram me mandar embora. O professor disse que iria junto comigo se isso acontecesse". Final feliz – ficaram os dois: Diana para invadir a clausura das freiras, descobrir o que havia nas celas e contar para todo mundo, tentar fugas espetaculares e entrar para a galeria das mais-mais rebeldes do Cajuru. Eloyr para ocupar um cargo raro – o de paraninfo vitalício. Ao todo, escreveu mais de 30 discursos para suas afilhadas. Elas dizem que dariam um livro, um livro que estão lendo ano a ano, sem precisar escondê-lo de ninguém.

Eloyr Blanck

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