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"O escritor brasileiro não sabe bater um escanteio" – era o que dizia Nelson Rodrigues em mais uma de suas primorosas matadas no peito. Vão aí dois ataques, um direto, outro sutil. O direto é que intelectual não joga futebol – fica lá no ar-condicionado, como resmungaria o técnico Muricy contra os críticos, enquanto o povão sua no campo. O sutil é que o futebol, este fenômeno assombroso da cultura brasileira, nunca marcou presença na sua literatura. Em nenhum dos grandes escritores do século 20 o futebol aparece como um tema relevante.

Mas isso está mudando, nas mãos de uma nova geração de escritores que já se forma sob outra perspectiva histórica, social e cultural. O futebol não é mais um dos "ópios do povo" do esquema esquerdista de antanho, e começa a exigir um olhar muito mais complexo e difuso – o que é, por excelência, a argamassa da ficção (há mesmo uma "Copa da Literatura Brasileira", um mata-mata crítico do qual este cronista atleticano, um notório cabotino, já conquistou o caneco, em 2008).

Entre exemplos sintomáticos da mudança de olhar, lembro O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna, que funde ficção e futebol em um romance colado numa cultura popular brasileira que se globaliza rapidamente; e O segundo tempo, de Michel Laub, um sensível memorial romanesco de um Gre-Nal inesquecível. Há alguns dias, em Frankfurt, uma antologia alemã de 15 escritores brasileiros (entre eles dois paranaenses, Rogério Pereira e o cronista que vos fala) mostra que definitivamente o futebol entrou no nosso horizonte literário (a edição brasileira já está na praça: Entre as quatro linhas – contos sobre futebol).

E, para arrematar o tema em alto estilo, lembro que acaba de sair O drible, de Sérgio Rodrigues, um romance que não consegui parar de ler nesta viagem à Bahia e Alagoas, onde participo da Feira Literária Internacional de Cachoeira e da VII Bienal Internacional do Livro de Maceió. Este livro me salvou maravilhosamente do tédio dos aeroportos e das viagens compridas. A narrativa começa com um videoteipe do célebre gol que Pelé não fez contra o Uruguai na Copa de 70 (que vai se provar um detalhe crucial da trama), e avança contando a história de um velho cronista esportivo da imprensa carioca, com pouco tempo de vida, vítima de um câncer, e de seu filho, o narrador do livro – e antagonista feroz do próprio pai. Entre eles, a figura fascinante de um certo Peralvo, aquele que seria um novo Pelé, não fosse uma tragédia que vai se anunciando. Filho de um marinheiro nórdico e de uma mãe de santo, Peralvo sai do interior para brilhar no Rio, primeiro no América, ainda em seus bons tempos, e depois no Vasco. Acompanhamos numa sutil troca de passes os últimos 60 anos da história brasileira pelo prisma do futebol, enquanto um suspense de fundo policial vai se armando com arte e engenho. Nenhuma dúvida: eis um escanteio bem batido.

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