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Costumo me definir, quanto à orientação espacial, como um "cretino topográfico" – alguém que, à solta numa cidade, terá grande dificuldade de se achar. Um endereço qualquer num papel, ilustrado por um mapa de referências, tem para mim sempre aquele ar de papiro inescrutável em busca de um Champollion que o decifre. Quando, enfim, guardo um lugar – por exemplo, a minha casa –, parece que é o corpo que apreende o caminho, e não a inteligência. De modo que, nas muitas vezes em que me mudei, acabava por um bom tempo voltando à casa antiga por um hábito que o cérebro custava a apagar de seus registros. É tão grave o problema que, se um dia me sequestrarem, o que espero jamais aconteça (toc toc toc!), não será necessário colocar capuz na minha cabeça; por mais que eu observe o caminho de ida e grave algumas referências objetivas (casa azul de três andares; árvore sem folhas; mendigo sobre um banco; mulher subindo uma escada olhando para trás, homem abrindo porta-malas), não saberia achar o caminho de volta.

Cansado de me perder, comprei um GPS – e, como se adivinhassem meu sofrimento, ganhei um outro logo em seguida. Hoje, orgulhosamente, sou um homem duplamente monitorado pelos satélites. Não uso o GPS para caminhar, porque no meu território existencial, que começa no Alto da XV e vai até imediações do Batel, e, num outro sentido, sai do Parque São Lourenço e avança até a fronteira do Boqueirão, o meu conhecimento é suficiente e já está mais ou menos gravado como um chip. Mas o mundo é grande, e mesmo dentro da minha área de atuação há selvas indevassadas. Súbito tenho de chegar a uma rua, e aí ligo um dos meus poderosos GPSs. Um deles é comandado pela Gabriela; o outro, pela Fernanda. A Gabriela fala muito, compulsivamente, e é cheia de detalhes úteis. Mas há um tom robótico na sua voz, pausas que parecem fruto de pilha gasta. "A 300 metros, vire à direita. A 200 metros, vire à direita. A 100 metros, vire à direita. Vire à direita". É difícil viver com alguém tão detalhista. Já a Fernanda é bem mais lacônica, mais despachada e tem uma voz natural, ainda que distante, como alguém dando informações educadas atrás de um balcão. "Adiante, vire à esquerda". Ou: "A 800 metros, vire à esquerda", e segue-se um longo período de silêncio, quase de indiferença. Eu acabo prestando mais atenção no desenho do mapa, com aquela seta vermelha. Agora, uma coisa tenho de reconhecer: ambas têm uma paciência sobre-humana. Por mais que eu erre o caminho – já fiz o teste, dando três voltas na mesma quadra –, elas jamais chutam o balde; a voz sequer muda o tom ao me reorientar. Mas a Fernanda é muito mais sábia: apenas repete a ordem "vire à direita", como se não tivesse acontecido nada. Já a Gabriela repete freneticamente o que já sei: "Novo cálculo da rota". O que é uma coisa meio pedante, como se eu fosse não um motorista barbeiro, mas um capitão de navio.

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