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Arrastei muitos sentimentos de culpa pela vida afora, como se, em vez de um bom e simples catoliquinho brasileiro, eu tivesse nascido um calvinista rigoroso, dos que não brincam em serviço. De quase todas as culpas fui me livrando, mas restou uma, teimosa, que continua resistindo a todos os meus argumentos liberadores: sinto-me mal cada vez que abandono um livro pela metade. É menos uma questão literária, estética, qualitativa, e muito mais uma sensação de incompletude de algo importante que deixei para trás.

Como defesa psicológica, in­­vento que, na verdade, não es­­tou largando um livro; apenas in­­terrompendo a leitura para re­­tomá-la, quem sabe, em condições melhores. Mas às vezes é apenas um truque. Quando lá pe­­la página 13 eu começo a ter de ler duas vezes o mesmo parágrafo e continuo sem pensar no que está escrito; quando na página 16 sinto uma urgência in­­controlável de conferir os e-mails; quando, virando a página 22, dou uma olhadinha nas páginas seguintes para ver se aquele ca­­pítulo está próximo do fim; quando ergo os olhos do li­­vro e prego-os no te­­lefone, à es­­pera de uma chamada salvadora que me obrigará a parar a leitura; quando enfim, na página 25, percebendo que não há nenhuma chance de eu ser salvo por um deus ex-machina, dou então um suspiro, coloco o marcador na página interrompida e largo o livro já com uma desculpa engatilhada na ponta da língua, na hipótese absurda de alguém me perguntar a respeito: "Ama­­nhã eu continuo".

Mentira descarada. O livro ficará abandonado uns dois ou três dias. Segunda fase, irá à prateleira do limbo, livros que acabam de chegar, que estão sendo lidos, que espero ler em breve e, os patinhos feios, os que estão pela metade. Última etapa, irá para a estante definitiva, por ordem alfabética do sobrenome do autor. Há uma hipótese re­­dentora: alguém me pedir em­­prestado o pobre volume, o que para mim é um alívio – dou mais uma chance ao texto e li­­vro-me tanto do livro como da culpa de mau leitor.

Esse é o caso típico de rejeição. Mas a grande maioria não se enquadra nessa faixa. Por exemplo: gosto muito de comprar li­­vros em viagem, por impulso, que começo imediatamente a ler. Mas, chegando ao destino, outras urgências me atropelam e o livro fica para trás. Às vezes re­­tomo romances ou ensaios que interrompi dois anos antes, mas jamais perdi de vista.

A leitura pela metade pode ser também um investimento de longo prazo. Há dois anos comecei a ler a biografia monumental de Dostoiévski, de Joseph Frank, em quatro volumes. Li os dois pri­­meiros em poucos dias, como quem devora um romance de aventuras. Empaquei no terceiro, justamente no melhor mo­­men­­to (ele começa a escrever Crime e castigo), já há mais de um ano, por uma torrente sem fim de compromissos. Mas o simples fato de saber que o volume está na prateleira me esperando tornou a minha vida melhor.

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