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Quando criança, lembro da carroça passando em casa para deixar lenha; agora, seis décadas depois, todo dia toca a campainha e alguém oferece gás. A pequena mudança da energia que move o fogão caseiro simboliza o acelerado processo de transformação do Brasil. Do pacato país rural que abria os anos 1950, nos transformamos num país predominantemente urbano, que vive e produz inchado em grandes centros. O intenso e violento processo de urbanização brasileiro explica muito dos problemas do país. Mas a distinção entre o campo e a cidade não é apenas um detalhe geográfico ou um simples movimento de populações criando problemas logísticos ou de infraestrutura (embora esses problemas sejam igualmente gritantes). Há um mundo de valores culturais que se transformam nessa passagem, quase sempre radicalmente.

A cidade grande é um espaço abstrato, uma criação geométrica, que nos arranca de todos os laços mentais de natureza e vizinhança; a comunidade urbana é antes mental que física. Os compartimentos culturais e sociais estanques acabam por se tornar imperativos. Ao mesmo tempo, a grande cidade é atavicamente a confluência do mundo; seu sonho é sair de si mesma e conversar com suas iguais, que estão em outros países, e não a dez quilômetros dali. A cidade é sempre globalizante; ela parece afirmar, com alguma arrogância, o triunfo do homem sobre a natureza, enquanto o campo é naturalmente conservador, como alguém que se submete, pela simples proximidade física, pela vizinhança avassaladora e pelo império do tempo, às regras simples, recorrentes, imutáveis e inexoráveis das estações do ano, das chuvas e secas.

Se a vida camponesa clássica é hoje inviável, porque nos condena para sempre à escravidão da pura sobrevivência, ela conserva uma aura de "pureza". Não sobrevive mais como meio de produção, mas mantém-se como um lastro cultural.

Metaforicamente, o Brasil vive com um pé no campo e outro na cidade, o que se reflete na literatura, que sempre espelha imagens sutis da nação. Amadurecemos mantendo uma divisão marcante entre esses dois mundos, a um tempo geográficos e ideológicos. José de Alencar (1829-1877) fez do exotismo brasileiro a chave da nacionalidade (do "nacionalismo", diríamos hoje), de acordo com o ideário de poder do longo período de dom Pedro II: seus romances eram mapas geográfico-mentais que nos definiam brasileiros (numa imagem, aliás, em que o negro ainda estava ausente, embora fosse visto em toda parte). Já o mulato Machado de Assis (1839-1908), criador da literatura mais refinada das Américas do seu tempo, jamais gastou duas linhas para descrever a natureza, o exótico, o peculiar – todo o seu universo é puramente urbano e mental. Nessas duas vertentes, encontramos duas imagens culturais do Brasil, que se entrecruzam numa tensão que permanece vivíssima entre nós.

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