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O planejamento urbano de Curitiba vem de longe. Do início do século passado, mais ou menos. Hoje a cidade tem áreas urbanas dedicadas a indústria, comércio, lazer e gastronomia. Lá pelos idos de 1927, no Bigorrilho, tínhamos o Mato dos Enforcados. Longe uns dois quilômetros da Praça Tiradentes, longe de ser uma referência ao herói da pátria, foi um triste destino de heróis anônimos caídos no desespero.

A Casa da Memória de Curitiba publicou um belo livro sobre a memória urbana da capital: “Bigorrilho, a construção de um espaço urbano”, de Maria Luiza Gonçalves Baracho e Marcelo Saldanha Sutil. Quem mora no Bigorrilho devia ter essa obra em casa, junto aos retratos de família. Antiga passagem das tropas do Caminho do Viamão, local de pousada dos tropeiros, o bairro era formado de chácaras com as casas de madeira dos imigrantes, bordadas de lambrequins. O Bigorrilho, descrevem os autores, “tinha os espaços ocupados por campinhos e barrocas, casas e quintais, lavouras e criações, os matos do Bigorrilho eram cortados por riachos e carreiros”.

Naqueles tempos os índices de suicídio deviam ser calculados pelos sapatos pendurados no Mato dos Enforcados

Os matos cerrados, infestados de aves e bichos, inspiravam medo nos meninos passarinheiros, sempre com seus estilingues no pescoço e cabelos escovinhas, cortados na barbearia de Pedrinho Cantarelli. Todo mês de junho, os meninos também recolhiam lenha para fazer as fogueiras das festas juninas. Lembrava no livro Ronaldo Suchevics: “Na época certa a gente costumava derrubar muito pinhão com estilingue. Cinquenta, sessenta piás lá dentro para derrubar pinhão. Às vezes, levavam quase meia pinha nas costas, uma cacetada, quando descia a pinha lá de cima”.

Um desses bosques do Bigorrilho era o Mato dos Enforcados. Cercado de mistérios e crendices, o bosque começava pouco depois da Alameda Augusto Stellfeld, onde hoje é o Hospital Evangélico, e terminava junto à Saldanha Marinho. Da Bruno Filgueira se estendia em direção à Rua Francisco Rocha, cortado por um riacho.

Junto, ficava o Campo do Caxias, onde os colonos deixavam seus animais para pastar: na hora de recolher as vaquinhas, andavam meio no escuro por entre carreiros, por vezes batiam com a testa nos sapatos de alguém dependurado em uma árvore. Ronaldo Suchevics recorda: “Olhava assim, e lá estava um enforcado. Quanta gente vinha da cidade para se enforcar ali. Quando nós íamos pegar o cavalo de madrugada, às vezes batíamos nos sapatos do cara, o cadáver estava pendurado na árvore”.

Para ir à escola, as meninas passavam com medo, alertadas sobre os horrores do matagal. Os meninos só passavam por ali armados de canivetes, estilingues e graúdas pelotas de barro. De onde surgiu a vocação daquele zoneamento urbano pouco se sabe, os motivos permanecem obscuros. Talvez em função das origens étnicas de Curitiba. Quem estiver familiarizado com a cultura de certas regiões da Europa, reconhecerá no imigrante a sua melancolia introspectiva, a propensão para a depressão, o alcoolismo e elevadas taxas de suicídio.

Naqueles tempos, presume-se, os índices de suicídio em Curitiba deviam ser calculados pelo número de sapatos pendurados no Mato dos Enforcados. Atualmente esses números não chegam ao público, sobretudo porque os jornais têm por norma não registrar suicídios. A não ser quando os fatos são por demais notórios, correlatos a outros casos policiais.

O que se sabe perfeitamente bem é que no Bigorrilho o Mato dos Enforcados foi sucedido por uma selva de asfalto e cimento. Enforcados, porém, ainda são muitos no desespero: agora pendurados no cartão de crédito e nos juros extorsivos de um país desgovernado.

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