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 | Peter Hamilton/The Bardwell Press
| Foto: Peter Hamilton/The Bardwell Press

Há 2,5 mil anos, o filósofo grego Heráclito cunhou uma máxima ainda hoje citada pelos quatro cantos: ninguém se banha no mesmo rio duas vezes; na segunda ocasião, nem a pessoa tampouco as águas são as mesmas. É uma metáfora que sintetiza o pensamento dele – tudo flui; nada permanece o mesmo.

É desse mesmo rio, que corre da Antiguidade para os tempos contemporâneos, que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman tirou a água com que encheu o copo de sua “modernidade líquida”. De certa forma, ele retomou a antiga tradição de olhar para a impermanência das coisas, e a adaptou ao mundo pós-industrial. Não por convicção sobre a realidade, como fizera Heráclito. Mas por constatação. Ainda assim, o sociólogo jogou luz sobre a atualidade – embora suas reflexões sejam passíveis de crítica.

Bauman, morto na segunda-feira aos 91 anos, dizia que vivemos em um “mundo líquido”. Líquidos, como se sabe, mudam de forma rapidamente. E essa, segundo ele, é a característica de tudo hoje: a velocidade da mudança – do mercado de trabalho às relações pessoais, passando por valores.

A pressa de consumir sensações levou a humanidade a um imenso vazio

A modernidade líquida substituiu a modernidade sólida, na qual havia certezas. Sobrou a insegurança de ver tudo mudando e de constantemente ter de estar se atualizando para não ficar para trás. No mercado de trabalho. Na educação. No comportamento. Para o sociólogo polonês, essa passagem do sólido para o líquido foi uma troca da segurança de um mundo estável pela liberdade.

Crítico do capitalismo, Bauman encontrou no individualismo e no consumismo as causas essenciais do fenômeno. Tudo teria sido reduzido a relações de consumo descartáveis. O trabalhador é descartável. As instituições são descartáveis. Até o amor é descartável. Segundo ele, as pessoas buscam a satisfação imediata de seus desejos. E, quando os satisfazem, partem para a consumação de outras vontades. Desse modo, não se estabelecem mais relações duradouras. As redes sociais seriam a mais perfeita tradução da modernidade líquida: ao menor sinal de desgosto ou conflito, basta um clique para excluir um “amigo” virtual de suas relações.

Para o sociólogo, a pressa de consumir sensações levou a humanidade a um imenso vazio. Com um forte quê de pessimismo, ele não apontou saídas claras para os problemas do mundo líquido – a principal crítica a sua obra. É como se alguém, sedento por novidades, tivesse bebido o líquido do copo com que o sociólogo colheu as águas do rio da impermanência. Bauman preferiu ver o recipiente vazio como o mundo que descreveu, confirmando sua hipótese.

Mas é possível dizer que ainda há algum líquido contido lá dentro, mantendo uma forma que, embora instável, pode ter alguma permanência. O copo de Bauman, enfim, só está meio vazio. Suas análises explicam muito do mundo contemporâneo. Mas não tudo. Ainda há quem cultive valores. E relações duradouras. Elas dão trabalho. Mas existem e são mais numerosas do que podem parecer. E são o refúgio contra o efêmero da vida.

Além disso, a visão de mundo de Bauman, embora essa não tenha sido a intenção dele, também pode conduzir ao saudosismo do mundo seguro que, em sua solidez, dificultava as mudanças e engessava comportamentos classificando-os de forma simplista nas categorias “normal” e “anormal” – o que produzia infelicidade. A modernidade líquida, por outro lado, propiciou a liberdade para que cada um conduza sua vida como achar melhor. Se houver respeito pelo outro, isso é saudável.

E, afinal, a inevitabilidade da mudança pode ser boa. Basta olhar a metade cheia do copo. Como fez Guimarães Rosa numa famosa citação do clássico Grande Sertão: Veredas: “O senhor... mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão”.

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