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 | Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Alairton vidrou os olhos na tela do televisor, assim que anunciaram um terremoto de magnitude 7.0 na Escala Richter. Era 12 de abril de 2010. Naquele dia, chorou o Haiti. Não pensava noutro assunto. Passou a decorar as estatísticas, a largar a comida no prato a cada novo boletim de notícias. Perguntava-se se era mesmo verdade – 200 mil mortos, 250 mil feridos e 1,5 milhão de desabrigados. Algo lhe dizia que aquela tragédia não era dos outros, mas da sua conta. Não estava enganado.

Alairton Castro de Lara, 45 anos, é natural de Santa Felicidade. Cresceu livre como um piá de vila, a Vila Itália. Na adolescência, sentiu-se chamado à vida consagrada ao ver slides sobre as missões da Consolata. Aos 18, entrou para um seminário, contra a vontade dos pais. Seu desejo era sair pelo mundo – para a África, de preferência – e oferecer a mão amiga aos necessitados. Mas eis que, por ironia, foi o mundo que veio até ele, justo na região onde nasceu.

Tudo se deu quando a terra tremeu no Caribe. Irmão Alairton – hoje membro da minúscula Congregação Pequena Família de Irmãos Franciscanos – iniciava um trabalho pastoral numa casa grande, feita de puxadinhos, na Rua Serafina Cuman Culpi, 311, Butiatuvinha. Chama-se Recanto Franciscano. Os quartos estavam destinados a acolher doentes de câncer e soropositivos. Mal deu tempo de recebê-los. Em 15 de maio, numa dessas conspirações do destino, o frei recebeu sete haitianos, os primeiros a chegar a Curitiba, dando início a um projeto de fôlego para acolher refugiados de guerra e imigrantes amparados por ajuda humanitária.

Foi ali que Laurette, Wikenby, Rolex, Weldy, John, Gabrielle e Edgar lamberam as feridas e encontraram um país. Hoje não precisam mais daquele teto. É comum ver um ou outro ali, em visita, para pedir a bênção e agradecer a acolhida no passado. Amam aquele homenzinho peso pena, divertido e despachado, hábito surrado, nariz de águia, olhos de passarinho, anel de coco no dedo e voz abafada – ansioso para ajudar. Sua acolhida desconhece frescura – senta todos para comer, divide o que há na despensa, põe-se a rir das lembranças dos dias ruins. A propósito, o lema da comunidade é acolher, amar e servir. Está aberta a todas as nacionalidades e religiões.

Sua acolhida desconhece frescura – senta todos para comer, divide o que há na despensa, põe-se a rir das lembranças dos dias ruins

Sim, houve uma pá de dificuldades, que Alairton, o piedoso, inibe-se em contar. Os primeiros beneficiados pela ação da ONU – designados para Curitiba – chegaram deprimidos e machucados. Ainda sentiam o cheiro da morte. Raro um que não tivesse perdido alguém no terremoto. Não bastasse, viam-se instalados num bairro distante de uma cidade fria de um país imenso e que falava uma língua cheia de “inhos”. Num caderno, o frei guarda as primeiras lições de português que ensinou: oi, tchau, bom dia e obrigado. “Eu não falo inglês, crèole, francês. Eu falo com a mão. Faço o papel de psicólogo de emergência”, resume.

O Recanto Franciscano funciona como uma casa de passagem. Pode-se ficar hospedado por três ou quatro meses – depois é seguir viagem. “Boto essa gente toda junta na mesa do café da manhã. Aqui é o lugar de parar, esquecer o sofrimento e olhar para a frente. Mas confesso que meu ouvido dói de tanto ouvir reclamações”, diverte-se. Quando o forasteiro chega, encontra um convite a reagir. “Sabe cozinhar? A cozinha está aqui? Faltou dinheiro? Vamos organizar um bingo... As senhoras do bairro vêm em nosso socorro. Fomos adotados. Aqui é um endereço como todos os outros”, resume.

O lar dos refugiados se mantém pela força da caridade de estranhos e de vizinhos. Tudo vem de doação, empréstimo, reciclagem, de modo que a expressão “pobreza franciscana” lhe serve como luva. Não há sombra de conforto. Nada combina. As cortinas seguem estampas selvagens, saídas dessas lojas populares do Centro Velho. Os sofás são refugo. Os santos presos à parede não têm pedigree francês ou italiano – molduras chinfrins cobrem ilustrações baratas de São José e outros santos. “Me dá um desconto no gás”, grita o frei à porta para um entregador. Desatam a rir. Desconto ganho.

Há atritos, claro, chamados pelo religioso de “choque cultural”, não raro expresso em palavrões cabeludos e hábitos pouco ortodoxos: “Esteve aqui um de Portugal, que tinha um palavreado um pouco esquisito”, debocha, ao listar o vocabulário do gajo. Dos muitos povos que aportaram na casa até agora, a maioria não se mostrou talhada a lavar um copo ou arrumar uma cama. Não raro, tratavam as mulheres com submissão. “Coloco a mão na vassoura. Ensino. Mostrei a um angolano que não há nada de mais em limpar o chão.”

O irmão não tem como cuidar do local nem fazer a comida sem a ajuda dos moradores. Não há empregados no convento. Resta-lhe convocar os estrangeiros para a faxina, para estender a roupa, de modo que as feministas e simpatizantes lhe devem uma salva de palmas. O Ministério Público do Trabalho também. Uma das agonias mais presentes dentre os moradores em geral é a falta de emprego. Basta se apresentar a um deles, puxar conversa, para ouvir um sonoro “o senhor pode me ajudar a conseguir serviço?”

Essa dor mexe com os brios do frei, que se põe vestido de discípulo de Francisco, pega um ônibus em companhia de seus hóspedes e sai arrastando sua sandália de couro pelas ruas de Santa Felicidade, São João, Cascatinha. Apresenta-se na porta de oficinas, supermercados e lojas. “Oi, seu Genaro, tem vaga aí para um rapaz da Guiné?” “Dona Gemma, estou com um padeiro cubano na minha casa.” A proporção de aceites pode não ser das melhores, mas já se pode dizer que o setor de comércio e de serviços da região está mais internacional do que nunca. A Terra gira.

Em tempo. O recanto recebeu até agora 112 homens e mulheres de 19 nacionalidades – Síria, Paquistão, Haiti, Iêmen, Congo... Os nomes e sobrenomes dos velhos e novos moradores estão anotados num grande livro de mensagens, pontificado na capa pela frase “Paz e Bem”, a célebre saudação franciscana. Trata-se de um inventário do que acontece naquele quintal. No mais, Alairton é capaz de falar de cada viajante como se tivessem sido criados juntos no Bosque São Cristóvão. É o irmão universal.

“Já lhe disse que estou me preparando para receber os venezuelanos?”

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Uma correção: a coluna da semana passada não registrou o nome de Rubens Withers Hoffmann como cofundador e sócio da revista TV Programas. A informação está retificada na versão on-line. A propósito, ocorre nesta sexta-feira, às 19 horas, no Clube Curitibano, o lançamento do livro A pequena notável – a história da televisão do Paraná está aqui, de Luiz Renato Ribas e Célio Heitor Guimarães, biografia da TV Programas, com a presença de pioneiros da televisão local, como Ary Fontoura e Sinval Martins.

  • Numa rua sem fim do Butiatuvinha, frei Alaírton revive os passos de São Francisco.
  • Casa onde refugiados e migrantes encontram guarida foi construída com doações.
  • Onze camas da comunidade são reservadas a brasileiros e estrangeiros em busca de um território.
  • As regras da casa são simples: dividir e conviver.
  • Quando teve seu despertar vocacional, frei Alaírton sonhou viajar pelo mundo, como missionário. Hoje o mundo vem ao bairro onde Alaírton cresceu.
  • Tudo começou quando Alaírton viu as imagens do terremoto do Haiti. Naquele dia, decidiu que faria algo.
  • Casa franciscana está aberta a toda comunidade: “Somos um endereço como todos os outros”.
  • Uma das práticas do franciscano é bater de porta em porta, no comércio do bairro, em busca de emprego para haitianos, sírios e quem mais.
  • No convento do Butiatuvinha não há empregados. Todo serviço da casa é feito por quem mora lá.
  • Alaírton pede que todos assinem um livro de visita. A história da casa dos franciscanos está sendo escrita por seus colaboradores.
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