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 | Foto Pedro Serápio/Arte Felipe Rosa
| Foto: Foto Pedro Serápio/Arte Felipe Rosa

Volta e meia, a gente encontra um vivente atolado em dúvidas sobre a existência de Deus. É preciso afeto: a aridez espiritual dói pacas nas juntas da alma. Para esses casos, receita-se um paliativo, um unguento, um emplastro. Que se escute Melodia sentimental (“acorda, vem ver a lua, que dorme, na noite escura...”), de Villa-Lobos com poesia de Dora Vasconcelos, de preferência na versão de Maria Bethânia. Se o firmamento estiver talhado de estrelas, melhor ainda – a combinação entre céu e música é de “deificar” crentes e não-crentes, como desejou o teólogo cientista Teilhard de Chardin.

Caso o remédio não ajude, que se ouça O trenzinho do caipira, também do Villa, com versos de Ferreira Gullar (“lá vai o trem com o menino, lá vai a vida a rodar...”). Se Melodia sentimental tem o poder de nos fazer pequenos, imóveis diante do divino céu do Brasil, Trenzinho nos transporta ao pé da mata, fuças na janelinha, entregues ao cenário que no passado seduziu tantos viajantes estrangeiros – Debret, Taunay, Langsdorff... Nem Melodia sentimental nem Trenzinho são provas da existência de Deus, mas merecem constar nos autos do processo.

O curitibano Julio Cesar Ribeiro, 36 anos, pai de Guilherme, marido de Viviane, morador do Xaxim, se diz um sujeito de fé. Menino moço, tocava violão nas missas da Paróquia São José Operário. Adulto, frequenta as novenas do Santuário do Carmo. É um tipo que faz Sinal da Cruz ao sair de casa e que desata um breviário de preces ao pegar no serviço. Pudera. Há 13 anos, é maquinista da ex-RFFSA, ex-ALL, hoje Rumo. A tomar pelo que diz, pilotar um trem é o atrito máximo entre peso e leveza, atenção e devaneio, loucura e razão.

Ouvi-lo quase põe a gente de joelhos. Um único vagão pesa em média 108 toneladas – o equivalente a mais de cem automóveis. Pois carrega 140 vagões, 12 mil toneladas. Mesmo com toda a tecnologia a seu dispor, o Ribeiro não pode vacilar. Difícil para a gente se imaginar no comando de uma máquina que só é leve nos versos do poema Trem de ferro, de Manoel Bandeira (“passa ponte, passa poste; passa pasto; passa boi; passa boiada; passa galho da ingazeira debruçada no riacho, que vontade de cantar! Oô...”).

Atente – o trem tem um pedal apelidado pela turma de HM (“homem morto”). A cada 40 segundos o dispositivo faz soar um apito, para conferir se o maquinista está acordado, ou mesmo vivo. Se não reage, inicia-se o processo automático de socorro, que só expert para entender o busílis. Ao mesmo tempo em que o tal pedal emite sons de alerta à tripulação, para o lado de fora da condução imperam as buzinas. Soam em silvos breves, longos e contínuos a cada vez que passa uma ponte, um túnel ou – medo maior – algum motorista distraído, um pedestre sem juízo, desses que gostam de arriscar o dedo mindinho e todo o resto.

Já lhe aconteceu de, do nada, alguém parar seu carro bonito na passagem de nível. Doris Day passou por isso na juventude, mas poucos, como ela, sobreviveram para fazer carreira em Hollywood e nos clubes de jazz. Outra situação: o trem vem e de repente surgem três saltitantes passeadores, entusiasmados com as belezas da Ponte São João na Serra do Mar, como se fossem 007, Indiana Jones e Ethan Hunt em férias do colégio. “Pode demorar 500-600 metros para o trem parar. A 60 por hora, a velocidade equivale a 120. Mas parou”, conta, com a perícia de um anestesista.

Caso se ache tudo isso coisa pouca, bobagem, importante acrescentar que a cabine do maquinista é quase sempre térmica – gelada no inverno, um Saara no verão; que o maquinário solta vapores – e não se trata de efeito especial –; que há um onipresente computador de bordo, ao qual se deve destinar toda a atenção possível. Sem falar no rádio, sempre ligado nas centrais. Quando a gente chega ao destino, sente-se um vencedor”. Por essas e outras, antes de assumir o comando de sua nave, o maquinista reza outra vez – agora, ao “Anjo da Guarda”. Tá certo ele.

A paixão de Julio por trens veio de mansinho. Criança, divertia-se com as histórias papagueadas pelo pai, um alagoano que desceu para a Bahia e demorou 17 dias para chegar via férrea ao Norte do Paraná. Lembra-se igualmente de ter uma quedinha pelas Marias-Fumaça que ilustravam os livros escolares. Dos desenhos animados – nos quais o inimigo, a mocinha, a sogra eram amarradas na linha do trem. Piá, jogava peladas na Estação do Iguaçu, pendurava-se no comboio. Parava por aí. Longe dele cantarolar Trem do Pantanal, imaginando-se a caminho de Santa Cruz de La Sierra.

Como na canção, queria mesmo era ser jogador de futebol – “cabeça de área e zaga”. Passou pelo amador do Atlético e ficou seis meses nas categorias médias do Flamengo. Lá pelas tantas, deu defeito na equação entre talento, esforço, espera e contas presas à porta da geladeira. Empregou-se na “rede” e, como que por encanto, sentiu-se feliz e satisfeito, mesmo circulando num lugar que deve ser mais tenso que um campo de refugiados – o pátio de manobras. Não importava. Decidiu ser maquinista, parecido aos velhos ferroviários com os quais passou a tirar um dedo de prosa. Seria eles amanhã.

Nos primeiros capítulos dessa saga, Julio Cesar conduzia trens aos Campos Gerais. Sua descrição da passagem da Ponte dos Papagaios é o que há. “Se o trem parar ali em cima, o maquinista não tem espaço nem para saltar da cabine”. Sugere que mesmo que fosse aquela sua última tarefa, estaria diante da paisagem que embasbacou o botânico francês Saint-Hilaire. O pedal, o apito, a fumaça, o computador, a ponte estreita – garante – não têm o poder de impedir que maquinista, máquina e natureza tirem um ao outro para dançar.

Nos últimos oito anos, Julio conduz de Curitiba a Morretes. O horário pode ser, sei lá, 3 da madrugada. Nunca é igual. Tem viagens que estão mais para Trenzinho do caipira. Outras, mais para Melodia sentimental. No Santuário do Cadeado, prece. O trecho preferido é o da Roça Nova – 40 quilômetros de descida nos quais vê macacos, onças, pássaros de toda a sorte. “Você entra no túnel com chuva, do outro lado há sol”. Adrenalina igual sente no alto do Viaduto do Carvalho. Fica obediente à engenharia alucinada dos irmãos Rebouças, que desafiaram os deuses e inventaram uma curva no ar. Sente-se um eleito – e se pergunta quantos podem estar ali todos os dias, a um passo da eternidade.

  • Há oito anos, o curitibano Julio Cesar Ribeiro faz o percurso Curitiba - Morretes. Ao todo, soma 13 anos de maquinista.
  • A atenção tem de ser máxima, mas é impossível não contemplar a paisagem. “É um privilégio”.
  • Julio se sente um continuador de um sem número de mestres maquinistas que o precederam na Serra do Mar.
  • Tem horas que a soma de fatores provoca adrenalina pura - o vapor, a buzina, o atrito das ferragens formam uma orquestra.
  • O maior medo, diz Julio, é de que um homem ou uma mulher surjam de repente nos trilhos. Na Ponte São João, certa vez, a freada foi precisa e evitou uma tragédia.
  • No último ano, Julio tem uma tarefa nova - conversar com os passageiros. Estrangeiros dizem que não existe ferrovia mais bonita do que a Curitiba-Paranaguá.
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