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 | Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
| Foto: Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

Em tempos idos, o agricultor José Arnildo Walter – morador da pequena Capanema, no Sudoeste do Paraná – costumava pendurar o radiozinho de pilha num galho de árvore, contando com Deus e os préstimos de uma antena de taquara. A estratégia lhe servia para acompanhar o noticiário e os jogos da Copa de 1970. Falante de um dialeto alemão, entendia pouca coisa, mas o bastante para tirar dali sugestões de nome para o filho que ia nascer. Depois de seis meninas, torcia por um guri. Pensou chamá-lo de Rivelino – homenagem ao craque da seleção. Como um vizinho teve a mesma ideia, restou a segunda opção da lista – Nixon. Além de lhe soar bem, o presidente norte-americano era o sujeito dos mais badalados nas ondas médias e curtas naqueles rincões. Devia ter feito por merecer.

Assim foi, para desagrado do cartório, que entendeu como um erro aquele “xis” no meio do nome. “Escreve-se Nickson e não Nixon, seu Arnildo.” A grafia deu origem à piada que acompanha vida afora o professor de Filosofia e História Nickson Walter, 45 anos. “Pai, por que você me deu um nome de bandido?”, divertia-se, ao se referir ao pivô do caso Watergate, escândalo que abalaria a democracia dos EUA em 1974, popularizando a palavra impeachment.

Nixon e Nickson têm em comum apenas a política, cada um com seu tempero. O paranaense foi picado ainda piazinho. Aos 13 anos, logo que deixou Capanema para ingressar no seminário, estava “alfabetizado”. Tinha bebido nas fontes da Teologia da Libertação. Marx não lhe metia medo. Termos como “espoliação”, “mais valia” e “práxis” faziam parte do seu vocabulário de imberbe. Não tardou encontrar um modelo de luta a seguir, também com nome de presidente – padre Getúlio.

Tal e qual o adolescente idealista que deixou Capanema em 1983, o Nickson homem feito entende que tem uma missão, mas “por ali mesmo”

De modo que ninguém se espantou, anos depois, ao saber que Nickson engrossava a caravana dos religiosos que deixaram os conventos, faziam-se pobres e se mudaram para as favelas. Tornou-se um “inserido”. O termo causava enxaqueca nos superiores, que viam com reserva tais impulsos esquerdistas. Deu de ombros. Tinha mais com o que se ocupar. O movimento sem-teto, por exemplo.

Nickson tem no currículo participação em três ocupações irregulares. Suas memórias de militância são apinhadas de emocionantes ações na madrugada, a bordo de Kombis caindo aos pedaços, plantando estacas para erguer barracos em vazios urbanos. Não raro, os manifestantes driblavam a truculência das forças de segurança – sem falar de chuva, frio, falta de banheiro, comida e água. Um tour no Saara.

De todas essas experiências, a ocupação da Vila 23 de Agosto habita o lado esquerdo do peito. No tal dia 23 de agosto, em 1991, Nickson bateu cartão com o destino. Chegou um, saiu outro. Era noite estrelada e cerca de 700 famílias tomaram posse de um terrenão às margens do Ribeirão dos Padilhas, lá longe. Sua narrativa do que ocorreu é uma versão revista e atualizada da passagem do Êxodo. Em vez do Egito e Canaã, os limites do Ganchinho e Sítio Cercado. Naquela ação, fez amigos para sempre – inclusive com uma guria chamada Catimilene. Mais. Lembra de ter escrito seu trabalho de conclusão de curso de Filosofia debaixo da lona, à luz de velas, embalado por um misto de excitação e angústia. Sabia que teria de escolher entre o claustro e a vida laica.

Ao decidir, entendeu que Catimilene era a companhia para o próximo capítulo de sua jornada de herói. O casal hoje tem três filhas. Ela é cabeleireira. Ele ocupa cargos de diretoria em duas escolas – o Colégio Estadual Iara Martins Bergmann e o Centro de Educação Infantil Carlos Drummond de Andrade, ambos no Sítio Cercado. Os Walter moram no Xaxim, mas o coração de Nickson está enterrado nalguma esquina das ruas estreitas do “23”, hoje regularizado. É sua Terra Prometida.

Sem exagero, é o sujeito mais conhecido da redondeza, e olhe que Sítio Cercado e Ganchinho juntos somam 126 mil almas. Basta observá-lo na calçada. Tchaus e olás formam jograis. Parte da popularidade se deve ao layout do professor – difícil não enxergar o brancão de 1,90 metro, careca reluzente e voz rascante de cantor de bingo. Ainda mais quando o gigante passa atarracado em seu inseparável Fusca bordô 1974, cuja lataria é anarquicamente forrada de rabiscos de alunos, que deixam ali o brinde de uma assinatura. “Acho bonito”, diz. Somando tudo, Nickson dirige 3 mil pupilos e coordena 150 professores. Multipliquem por 25 anos de magistério. Líder? Podem apostar.

“Amigão, você tinha de se eleger”, sugerem os conhecidos. A frase lhe provoca urticárias. Tal e qual o adolescente idealista que deixou Capanema em 1983 para ser padre, o Nickson homem feito entende que tem uma missão, mas “por ali mesmo”. Vê-lo em ação é um verdadeiro tratado pedagógico. “Agora o abraço da paz”, decreta, para dois pequenos que acabam de sair no braço. Obedecem, para depois brindar o mestre com outro aperto – esse espontâneo. Sim, ali é uma escola.

Não é a única cena de cordel protagonizada por Nickson. Sua performance é ainda melhor quando se pega a narrar o que se deu na madrugada de 23 de agosto de 1991, “a mais bela das ocupações”. Verdadeiro épico – misto de DeMille com Oliver Stone. “Os estrangeiros contam para os filhos que vieram num navio. A luta pela habitação é a viagem dessa gente”, defende.

Não à toa, curte sentar no pátio do colégio e olhar para a sequência infinita de prédios do Ganchinho, para as avenidas exibidas do Sítio, para os ares de interior do “23”. É seu observatório do passado – da lona preta para a casa própria, escola cheia, amigos a perder de vista. “Valeu.” Não pesquisei para saber se algum pai da redondeza batizou um filho de Nickson. Acredito que sim. Tomara tenham lembrado de dizer ao escrivão que não se diz Nixon, mas Nickson. Assim é que se escreve um nome.

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