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Arte: Felipe Lima | Foto: Antônio More
Arte: Felipe Lima| Foto: Foto: Antônio More

Fico pensando em quantas páginas foram escritas para explicar a alma masculina – essa rocha sobre a qual se ergueram reinos e catedrais. Até o cineasta Pedro Almo­­dóvar – expert em mulheres, particularmente as mais nervosas – dedicou um filme aos marmanjos: chama-se Fale com ela. Vale o show, mas não se tem notícia de que depois da fita alguém tenha trocado a sanguinolenta pelada dos sábados por um excelso colóquio matrimonial.

Tolos teóricos, pobres esposas, mal sabem: tudo o que um ho­­mem precisa para escancarar seu coração é de um bom barbeiro. Atente. Tirando o pai e a mãe, mulher e o dentista, a relação mais duradoura é sempre com o sujeito que nos corta os cabelos. Há quem viaje para desfrutar de seus préstimos. Outros, possessivos, marcam hora. Tem quem os procure antes de tomar decisões difíceis. E quem lhes diga, olhos fitos, frases repassadas de ternura: "Só você sabe o jeito que eu gosto".

Eis um ritual que merecia ser estudado pela antropologia. Diante daquele tipo inesperado, com navalha ou tesoura na mão, Joões e Pedros respondem à mais existencial de todas as perguntas, digna da boca de um Sartre: "Como é que você vai querer?"

Pode-se responder "meia-cabeleira-curta" ou "me deixe igual ao Fiuk", pouco importa. Em segundos, cachos ao chão, o freguês se converte num Sansão anêmico. Para disfarçar sua fraqueza diante do espelho, usa de códigos. Ora desdenha o time alheio, ora emite sons tribais em louvor às virtudes anatômicas de alguma desinibida de revista. Mas de outra coisa não fala senão de si mesmo. O barbeiro sabe, mas usa de evasivas. "Passo a maquininha em roda da orelha?"

A sessão só se encerra quando vemos o rodapé tinindo. Soltamos um "ahã" e tempo esgotado. A vassoura varre a conversa fiada para um cantinho. Ali, ninguém sabe a quem pertenciam os acajus, os brancos ou os belos e infames fios da mocidade. Essa cabeleira maluca e confusa vai toda para o saco. E tchau: é disso que os homens gostam.

Alceu Rocha, o "Catarina", 61 anos, corta cabelos há quatro décadas. Nesse tempo, clientes chegaram ao salão – o tradicional Itacolomi, na esquina da Visconde do Rio Branco com a Saldanha Marinho – a bordo de um Fiat 147 e hoje estacionam carros maiores que o próprio salão, um nanico de 12 metros quadrados. Não importa se são juízes, desembargadores e até bispos: é sentar e confessar. Não por menos, muitos beautiful centers se arrastam para o cadafalso: são incrementados demais para um momento tão íntimo.

Até onde se sabe, Catarina fez por merecer tamanha fidelidade da freguesia. Aos 17 anos, com poucas letras e morando nas roças de Rio do Sul, entendeu que precisava de uma profissão. Sem que ninguém lhe ensinasse, cortou a primeira cabeça. Não se tem notícia da cobaia.

Pouco tempo depois desembarcaria no hoje Terminal Gua­­da­­lupe. Tinha 600 cruzeiros, o bilhete do ônibus e guarida na casa do primo João de Souza, na Vila São Paulo, também barbeiro. Graças ao parente, chegou ao Itacolomi, de onde nunca mais saiu.

Semana passada se deu conta: 40 anos. Na data, chamou os amigos, pagou chope para a turma no bar Ao Distinto Cavalheiro, onde ele e o sócio Neri Aupt inspiraram uma mesa temática.

Falamos antes da festa. Foi uma conversa pedagógica. Cada episódio da vida de Alceu veio ilustrado por um documento que tirava da gaveta. Ao falar de Ana, a mãe, e do pai "enérgico", Venâncio, sacou do lado do secador uma foto da casa onde nasceu. Ao contar da profissão, mostrou a máquina manual de cortar cabelos que Ana lhe deu. "Nunca funcionou. Jamais lhe contei." Lembrando da chegada ao Paraná, exibiu duas cadernetas da Saúde Pública, cheias de carimbos sob sua foto 3X4 de galã, meia-cabeleira-longa e costeletas – parecia um Elvis com abreugrafias em dia.

Encerramos tagarelando sobre cabelos. Neri diz que não se deve lutar contra eles. Cada fio diz para onde quer ir. Feito colegiais, rimos do estilo "busca-ré", perfeito para testas alongadas. É simples: joga-se a cabeleira pouco cabeluda pa­­ra trás, deixando-a ao vento, bem anos 60. A parte da frente, sincera e nua, estampa a devassa do tempo, bem anos 2000. Quero esse. Esse Alceu entende a gente.

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