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 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Felipe Lima
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O Batista abriu um bar

A notícia de que o poeta Batista de Pilar abriu um boteco tem deixado meia Curitiba boquiaberta. Aiaiaiaiaiai, homem de Deus. Explico. Batista – um artista de rua, como se define – era do tipo que desafiava a ciência logo de manhã, entornando três copos das mais puras branquinhas. Tinha, com larga vantagem, o fígado mais resistente de sua geração. Mas não invencível. Esteve internado e dormiu no sereno. Lembro do dia em que o encontrei debaixo de chuva, pé no chão e maltrapilho, em roda da Catedral, personagem de uma castiça maldição dos pinheirais.

Até que por milagre, simpatia, reza braba ou coisa assim, mandou "fechar a conta". Arrumou um quarto para morar, na Paula Gomes, "com fogão e cama", e saiu pimpão pela cidade vendendo camisetas, agendas e seus livros: tem cinco obras publicadas. Final feliz. Das práticas etílicas, conserva apenas uma Malzbier no almoço e outra no jantar, para fins terapêuticos: "Levanta o véio", recomenda o amado Batista, para bons entendedores.

Aos que temem recaídas do Pilar diante de uísques e vinhos à venda no minúsculo "Bartista" – seu estabelecimento no Alto da Alameda Cabral –, avisa que não vai dormir com o inimigo, de jeito nenhum. Tem contas a pagar. Só em aluguéis são cerca de R$ 1,2 mil por mês. Além do mais, aos 52 anos está ocupado em declamar, sua paixão confessa. Só que, por força do destino, poesia, para ele, rima com bar. Foi inclusive no mítico Bar do Cardoso, no Centro, onde tudo começou. Ou quase tudo.

João Antônio Batista de Pilar é de Palma Sola, no Oeste catarinense, bem na divisa com o Paraná, o que nos permite um contestado da sua pessoa. Lá, ainda piá, descobriu a poesia durante uma encenação para o Dia da Árvore. Declamou uns versos vestido de guatambu – espécie de tronco duro, usado para fazer cabos de enxada. Convenceu tanto que ficou conhecido como Guatambu, ou Guata. Mocinho, formou-se técnico em Secretariado, mas que nada. É emocionante ouvir sua voz rascante, curtida nos piores barris, tirando chispas do poema Cemitério de Campanha, de Jayme Caetano Braun.

Ao chegar à capital, em 1979, "Guata" virou o tal do rosto na multidão. De dia trabalhava nos terminais de ônibus. Na hora de dormir, descia para a favela do Parolin. Os bares logo o descobriram, empregando-o como garçom, chapeiro e preparador de caipirinhas. Ter de prová-las foi sua perdição, como se sabe, mas em compensação conheceu boêmios e malditos que o catapultaram de vez para a literatura.

Batista confessa que bebeu, mas também que viveu, como dizia Jaguar. Levou parte da vida de carona, rodando o país, vendendo versos aos apaixonados e aos desesperados entregues às garrafas, o que lhe exigiu passar muita lábia nos seguranças. É uma das especialidades desse leitor de Nietzsche e Herman Hesse, que guarda versos de cabeça e adora um microfone. "O poeta tem de ser o resumo de tudo que existe", filosofa, deixando-nos sem fala.

A poesia de Batista de Pilar lembra a de Paulo Leminski – do qual se recorda como se fosse uma alucinação, talvez por ambos estarem de fogo quando se viam. Mas sua madrinha de fato foi a Helena Kolody, à qual chama de Santinha. Conheceram-se na Feira do Largo da Ordem. A velha senhora lhe estendeu a mão, um sorriso e o convite para uma visita no apartamento onde morava, na Praça Rui Barbosa. Virou freguês. Helena avisou os porteiros, claro, e Batista nunca se viu molestado. Eis uma lembrança de relicário do cara que já lambeu muita ferida.

Pois é – Leminski, Helena e Cardoso se foram. Nosso poeta anda sóbrio e quer apresentar a poesia a outros batistas. Eles são muitos. Não está enganado. Um dos maiores movimentos da poesia marginal no Brasil, a Cooperifa, se deu em torno do Bar do Batidão, num subúrbio de São Paulo. Como diz o idealizador do projeto, o poeta Sérgio Vaz, um boteco pé-sujo pode ser a ágora para os que escrevem com menos crase e menos vírgula. Que a Santinha os proteja.

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