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 | F oto: Marcelo Andrade/Arte: Benett
| Foto: F oto: Marcelo Andrade/Arte: Benett

Há uma década, o jornalista Ruy Castro publicou um texto intitulado "Para o Correio da Manhã, com uma lágrima". É de chorar. Tenho impressão de que poucos autores fizeram elegias aos jornais mortos, que pecado. O próprio Ruy, ao lembrar o bravo diário da imprensa carioca derrotado pelo AI-5, em 1968, e que abrigou em suas fileiras gente como Graciliano Ramos e Aurélio Buarque de Hollanda, escreve que "os jornais quando morrem não vão para o céu". Aos poucos desaparecem na lembrança dos seus leitores, até descansarem em paz no setor de periódicos da Biblioteca Nacional.

Não me tomem por doido varrido – mas um dos maiores prazeres da vida é folhear publicações antigas. Pode ser saudade encubada ou falta de Ritalina, sei lá. Gosto muito das razões dadas por uma conhecida minha: "Jornais velhos são menos ameaçadores", diz, debruçada sobre pilhas de edições, as quais degusta antes de dormir, sem medo de perder o sono. Já em estágio de virar rolinho para acertar a fuça do cachorro, aqueles diários todos deitados no sofá lhe mostram que uma parte do mundo desaba todo dia, mas que outra se repete e permanece. Serve de consolo.

Lembro a primeira vez que a questão "do que vai e do que fica" caiu no meu colo – foi ao ler O choque do futuro, do norte-americano Alvin Toffler. A folhas tantas, ele falava do "supermercado que desapareceu", referindo-se ao desmanche contínuo da arquitetura, deixando milhões órfãos das referências de infância. Em 1970, quando o livro chegou às livrarias, a idade máxima de um prédio nos Estados Unidos beirava 40 anos.

Achei exótico, pois àquela altura eu tinha a impressão de que o armazém do seu Edevar, meu vizinho, seria eterno. Pois não era. Não sei o que você sente, mas é de dar nos nervos a rapidez com que a cidade é desmontada, pondo em seu lugar aqueles caixotes envidraçados nos quais serão vendidos colchões. Assim como Toffler, a gente se vê pelejando para lembrar o que havia ali antes e não consegue dar um download. Vão nos sobrar fiapos de memória – mas a memória é pródiga em nos pregar peças.

Tempos atrás, a artista plástica Teca Sandrini comentou que um sobrado antigo, atrás de onde está sendo construída, há 34 anos, a Primeira Igreja Batista de Curitiba, no Batel, teria sido a sede do jornal O Dia (1923-1960). Ali trabalhara seu pai, José Erichsen Pereira, o Jeep, um dos papas do jornalismo paranaense. Teca lembra ter circulado, guria, entre as máquinas de datilografia e homens de terno sempre com um cigarro à boca, como era costume. É uma cena bonita. Nunca mais passei pela Avenida Batel, esquina com a Bento Viana, sem lembrar do Erichsen, a quem não conheci, e de O Dia, o jornal que nunca li.

Dias atrás, consegui visitar o sobrado. "Era para ter sido demolido há duas semanas", contou o pastor Nílson, administrador do templo, sobre o fim anunciado do local, enquanto pisávamos no chão arruinado pelos cupins, à procura de sinais do que teria sido a redação de um jornal. Nada. Restou imaginar onde teriam sentado Freitas Neto, Erasmo Pilotto, Newton Sampaio e Alceu Chichorro. Ou uma chegada súbita de Moisés Lupion, proprietário de O Dia na década de 50, com o qual fazia oposição a Bento Munhoz da Rocha.

Como checar é a rotina dos jornalistas, liguei para o Cid Destefani, da página Nostalgia, infalível nessas questões. Ele quase incinerou os meus tímpanos com um berro a pleno vapor. A tal casa da Avenida Batel era o escritório da usina de erva-mate Engenho do Banco. O Dia ficava um pouco para a frente, onde hoje funciona uma estacionamento, comércio que prolifera feito a gripe da estação.

Derrotado pela realidade, quase desisti de falar do bravo jornal O Dia. Mas acho que hoje é a última chamada para o sobradinho da Batel, "aquele que foi sem nunca ter sido". Restam-lhe poucas horas em pé. Para ele fica apenas nossa ignorância sobre o que se passou ali. E a doce ilusão da Teca, que o fez merecedor de uma despedida, quiçá de uma lágrima sentida.

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