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 | Arte: Felipe Lima
| Foto: Arte: Felipe Lima

Em tempos idos, era muito comum colocar no quarto das crianças a reprodução de uma pintura do Anjo da Guarda, grandioso(a), com asas fresquíssimas, protegendo um menino e uma menina perdidos na mata escura. A imagem fez escola nos lares brasileiros, até ser vulgarizada sem dó pelas madrinhas de escolas de samba, performers gays e BBBs. Ajudava, entre outras, a gurizada a não mijar na cama, em caso de sentir medo do escuro. E a manter a calma se porventura perdessem a mão da mãe ou do pai. Que se lembrassem do protetor full time antes de abrir um berreiro.

A gente não os enxergava, “pois anjos são invisíveis”, avisavam os adultos, mas cada um tinha uma criatura daquela na cola, exclusiva, proteção hoje reservada apenas às celebridades e maridos perseguidos por detetives particulares. Em caso de aflição, que rezássemos a oração do “Santo Anjo” e pronto. Esperto, lembro de virar as costas de forma brusca, para ver se flagrava o Anjo distraído. Quem sabe naquele instante ele não estivesse com sua loção protetora de transparência máxima. Como os retrataram, alguém deve tê-los visto, certo? Mas raciocínio não ajuda muito em questões de fé.

Os anjos voltaram à ativa. Talvez não sejam mais tão servis como os de antigamente; nem tenham aquela cara rosada de quem nasceu em Witmarsum ou Pomerode; mas que estão na área, estão

O Anjo da Guarda é imagem romântica de fato, bem a gosto do catolicismo sentimental do século 19 – quando a pobreza trazida pelas revoluções industriais pedia uma piedade mais adocicada, verdadeiro emplastro para tanta dor. O mundo deu reviravoltas de lá para cá. Os anjinhos de cabeceira de cama ganharam substitutos que variam a cada tempo. Hoje o posto pertence à Dora Aventureira, Peppa Pig e à Galinha Pintadinha, se é que estou por dentro.

Pois dei de achar que os anjos voltaram à ativa. Talvez não sejam mais tão servis como os de antigamente; nem tenham aquela cara rosada de quem nasceu em Witmarsum ou Pomerode; mas que estão na área, estão. Aos fatos. Há cinco anos, entrei para a turma que só usa ônibus e anda a pé. Tô gostando, mas... me sinto aquele piazinho do quadro, atravessando a ponte bangue e o breu da mata. Dia desses, inventei de contar quantos carros vejo furando o sinal. Minha média é de dois por dia, o que numa semana soma 14 chances de ser atropelado, aleijado ou morto. É ou não é coisa do além? Só tem uma explicação: é obra do Anjo da Guarda.

Não levem a mal – mas só com uma pitadinha de humor para suportar a aventura na selva em que se converteu a vida de pedestre. As delícias dessa escolha, só quem abraçou sabe. Descobre-se que o que parecia longe era perto; aprende-se a carregar pouca coisa na mochila; que usar tênis é o céu. E a cada semana a gente cruza com um lugar diferente. Depois, dá-lhe contar do que encontrou, mesmo quando foi bater perna na caixa-prego.

Quanto às amarguras, ponha-se na conta as calçadas fuziladas e a ansiedade de atravessar, sei lá, 15 faixas de pedestres ao longo de um percurso, e 15 vezes ter a suspeita de que um motorista não vai parar, assim, por capricho, como um deus temperamental. Dados do Detran de 2013 indicam 3.831 atropelamentos em um ano no Paraná. Desses, 337 resultaram em, digamos, férias perpétuas para o Anjo da Guarda, que retorna à matriz, impotente diante das maravilhas dos freios ABS.

Fala-se às pencas de mobilidade. Resta saber por que diabos a falação custa tanto a surtir efeito sensível. Lembro o que diz o crítico britânico Terry Eagleton – “nunca subestimem a cultura”. Deve ser o caso. O imaginário de status, sexo e poder que envolve o automóvel é tão forte que todos os discursos sucumbem diante desse tiranossauro de quatro rodas. Ele vence qualquer parada.

Já tentei acreditar que a bestialidade de muitos motoristas que nem sequer dão sinal, para mostrar quem é que manda, tinha a ver com Curitiba. Aqui, cedo se aprendeu a diferenciar os “com carro” e os “sem carro”. Numa sociologia de botequim, estaríamos todos tentando nos igualar ao comendador Francisco Fido Fontana, que andava por aqui, de automóvel, nos idos de 1903. Mas não faz sentido. A febre automotiva é epidêmica, uma praga sem fronteiras.

Em artigo sobre o tema, o jornalista Gilberto Dimenstein profetizou que um dia os atropelamentos serão uma vergonha do passado, tanto quanto a escravidão ou a proibição do direito de voto a mulheres. Tomara. O historiador inglês Tony Judt – ele mesmo quase que criado dentro de um Citroën – é mais pessimista: lembra que o carro não passa de um símbolo do pós-guerra, um brinquedinho dos baby boomers. Agora virou desespero. Precisamos crescer. Que o Anjo da Guarda nos leve até lá, amém.

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