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 | Foto: Marcelo Andrade – Arte: Gilberto Yamamoto
| Foto: Foto: Marcelo Andrade – Arte: Gilberto Yamamoto

Desculpem, mas quem não assistiu a Irmão Sol, Irmão Lua não viveu. Amo a música tema – "Doce é sentir, em meu coração...". A cena do frade que, às lágrimas, admite não dar conta dos rigores da castidade. A sequência em que Clara tem os cabelos cortados. E, claro, o momento em que Francisco arranca as roupas e dá no pé do pallazzo de seu pai. A gente chega a ficar de farol baixo, pois nessa hora descobrimos admirar "o pobrezinho de Assis" na mesma medida que entendemos que é impossível ser como ele.

Durante décadas – o filme de Franco Zeffirelli é de 1972 – amarguei a suspeita de que o ideal de Francisco tinha ficado preso em algum lugar do passado. Era uma história bonita, para ouvir de joelhos, e paciência. Dizia respeito aos santos. Restava lavar a alma vez em quando e cantar "Senhor, fazei de mim um instrumento de tua paz...", de preferência na versão porreta dos Meninos de Deus.

Mas eis que, para desmentir minha tese, surgiram os irmãozinhos da Fraternidade Toca de Assis, uma congregação religiosa brasileira que reedita – trajando Havaianas, nem sempre as legítimas – o sonho sonhado por Francisco no século 13.

Para quem está boiando no assunto, os frades da Toca foram criados em Campinas (SP), no ano de 1994. Logo se espalharam pelo país. São radicais. Dormem no chão e debaixo do mesmo teto que os miseráveis que recolhem das ruas. Cortam-lhe os cabelos. Curam-lhes as feridas. Vivem com muito pouco – túnicas rotas, crucifixo de madeira e com o que a providência divina lhes arrumar, refeições incluso.

Aqui na capital, a Fraternidade funciona nos altos da Vila Guaíra. A casa dos irmãozinhos não é nenhuma choupana, como pensei, mas um desses palacetes erguidos em honra e glória da riqueza. É estranho vê-los ali, num lugar que pode ser chamado de tudo, menos de "toca". Os irmãozinhos acham graça do espanto – a mansão não lhes pertence. É alugada pela ONG Ação Social e serve de abrigo para 20 homens que até ontem viviam nas calçadas. "Os pobres merecem", defendem os inquilinos.

Os ex-mendigos dormem nos melhores quartos; os frades, no sótão, área cujas virtudes térmicas são invejáveis – é frio no inverno e quente no verão, inclusive às 5h40, quando a comunidade pula da cama, melhor, do colchão. É preciso começar bem cedo, para rezar, amar e assar broas para vender. O negócio rende uns trocados e algum dedo de prosa com a freguesia, ainda rabo de olho diante daqueles nobres pés de chinelo. Pudera. Os guris da Toca vivem numa penúria de dar dó, mas parecem distribuir alegria em bolhinhas de sabão. Ouvi dizer que, para os franciscanos, a pobreza é uma dama a qual desposam. Deve ser.

Há uma semana, os irmãozinhos desfrutam de súbita popularidade por onde quer que flanem seus capuzes. Em alusão à visita do papa Francisco, o Globo Repórter mostrou a rotina da Toca de Assis no Rio de Janeiro. Um dos entrevistados foi o irmão Vaticano, que na verdade reside aqui, pertinho da gente. Depois da reportagem, teve curitibano que criou coragem, bateu palma no portão e estendeu a mão aos poverellos da Toca de Assis. Incluam-me na lista.

Quem me abre a porta é o irmão Mário – um baiano arretado, que jura estar achando a aragem dos últimos dias uma coisinha de nada. Sei. Marcelo, outro confrade, é magro e alto, feito um figurante do Zeffirelli. Mas quem me conduz é Glauber Brian Menezes de Morais (foto), 21 anos, natural de Brasília. Faz as honras da casa. Depois me conta seus segredos.

Não sei se você, caro leitor, já teve a oportunidade de ouvir uma história de chamado vocacional. Recomendo. Brian planejava ser arquiteto. Gostava de se vestir bem – de preferência M. Officer e Chilli Beans – e namorava uma guria a quem dava bons presentes e coisa e tal. Até ver 80 irmãozinhos da Toca de Assis fazerem os votos. "Fiquei mexido." Os sinais não pararam mais. Noutro dia, a pulseirinha com o nome da namorada se soltou do pulso, à toa. Em outro, o casal se despediu num casto abraço. "Doce é sentir..."

"Eita ferro", repete Brian a cada pergunta desferida. Mas não se furta de responder quase nenhuma. Inclusive sobre seu guarda-roupas, agora sem grifes. Tem quatro calças e faz pouco trocou o par de chinelas por sandálias de couro – seu único luxo nos últimos anos. Garante que dormir no chão lhe faz bem à coluna. Não passa frio nem fome. Já escolheu o nome que quer ter depois dos votos. Prefere não contar. Fosse ele, escolheria Francisco, pois lhe cai muito bem.

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