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 | Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima
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Não – o furacão Matthew não atingiu o flat onde mora a jornalista Rosy de Sá Cardoso, 89 anos, no Centro de Curitiba. Nem o Antonov pousou lá. Mas bem parece. Há papéis para todos os lados, espalhados pela própria moradora, de modo a achar uma ordem no caos. Como ela não tem filhos nem sobrinhos – e os achaques da idade cada vez mais lhe castigam –, precisa encontrar um destino para seus guardados. Tem recorrido a colecionadores, que andam dançando feito cossacos.

Para um deles doou seu acervo de cartões-postais, conseguido à custa de incontáveis viagens pelo mundo. Para outro, filho de uma amiga, antenado em tecnologias antigas, repassou a máquina de escrever que a acompanhou desde as primeiras lides jornalísticas. De todos, o mais felizardo é o antiquário Paulo da Costa, da loja Fígaro, destinatário de pilhas de recortes e documentos salvos por Rosy em algo como “quase um século”. Até o momento estariam sob seus domínios duas capitanias hereditárias inteiras de caixas cheias – sem as quais não se escreve a biografia da primeira mulher a trabalhar numa redação de jornal no Paraná. E uma centena de assuntos adjacentes aos quais ela está ligada – moda (foi a pioneira a usar calça comprida em público), radiodifusão, turismo, colunismo, comportamento...

A operação desmanche do apê tem lances engraçados. Ao abrir uma gaveta, a própria inventariante se surpreendeu com a pasta amarelada, na qual estavam escritas na capa – com sua própria letra – duas frases dignas de Agatha Christie, mas também de Groucho Marx. 1) “Ler depois da minha morte” – assinado: Rosy. E mais abaixo: 2) “Jogar fora sem ler” – assinado: Rosy. As frases foram ali colocadas em momentos diferentes e por pouco não selaram o desaparecimento de 35 poesias escritas pela jornalista, presume-se, entre 1948 e 1962.

Ela lembrava ter cometido alguns versos, como gosta de dizer, mas não achava que fossem tantos. Nem todos estavam datados – a maior parte se encontra datilografada, sempre em papel bíblia. Dentre os escritos à mão, há os apenas esboçados e os passados e repassados a limpo. Releu cada um sem paixão, exceto um poema, do qual gostou – “Ciranda, cirandinha”, de novembro de 1952, resultado de seu flerte com a poesia moderna.

Como quem encontrou a pasta foi ela mesma, e não outra pessoa, como pareciam prever suas ordens expressas na capa, decidiu jogar no lixo, sem dó, bem a seu estilo iconoclasta (“essa porcaria não tem data”, esbraveja). Por um desses lances de sorte, comentou o episódio com uma amiga, que a convenceu a preservar o material, hoje a salvo da fúria incendiária da autora. No mesmo pacote vieram parte das crônicas que publicou na imprensa, inéditos e um lote com o qual ela jurou não fazer gracinhas. Vamos ver.

Difícil a mudança de mentalidade em relação às mulheres, no Paraná, que não passe por ela

Os versos esquecidos de Rosy de Sá Cardoso podem ser divididos em seis categorias. A primeira é modernista, já citada, seguida da existencialista – essa, uma produção farta. Leva a suspeitar que na mocidade a pragmática e resoluta dona Rosy gostava de curtir uma fossa, como se dizia. Não falta uma noite de insônia com cigarro entrededos. É flagrante o parentesco com a tristeza de Françoise Sagan e com a chuva fina que molhava a corcunda dos poetas beatniks. Sua performance é melhor, contudo, no gênero dor de cotovelo, no qual entra com luvas brancas e salto agulha.

Cantora de boleros e de tangos desde – creiam – os 14 anos, Rosy dominava o ramo das paixões fatais, inclusive em espanhol, como se carregasse uma adaga na cinta-liga e lhe baixasse a Maria Félix. “Volviste hacia mi”, “Creíste”, “Mi secreto”, “Qué hacer?”, todas de sua autoria, bem poderiam ser musicadas – tivesse as mostrado a alguém. A maior parte dos textos dessa lavra é de 1952, um ano misterioso pacas. É lê-los e perguntar à queima-roupa quem era o objeto de tamanha volúpia. “Ninguém”, responde a típica anti-heroína antes de a frase acabar. “Nunca estive apaixonada, nem noiva, nem nada”.

Na época em que a poesia deu de lhe roer os calcanhares, Rosy costumava voltar do trabalho em companhia de Adalto Araújo – irmão da crítica de arte Adalice Araújo. A família dela – talvez como forma de torcida – o apelidou de “Encontrinho”. Nessas ocasiões, os dois amigos falavam sobre cultura em geral, de poesia em particular. Para ele, a jornalista escreveu: “Você confunde a rosa e a mulher. Existe a semelhança apesar... ou por causa dos espinhos?” No mais, como é sabido, a grande paixão da vida de Rosy foram os aeroportos e as aeronaves que a levaram aos 86 países que conheceu.

Às poesias modernistas, existencialistas e às passionais, Rosy desenvolveu versos instrutivos em “Viver”, “A razão”, “Vida virtuosa”, “Escolha difícil”. É louvável o empenho em premiar a conduta reta, mas seu elogio ao agnosticismo funciona como um anticlímax, o que torna esses textos deliciosos. São meus preferidos. Ela também flertou com o bossanovismo em “Você” – “já que é inútil, o destino não deixa eu ser de você”. Ficaria ótimo na voz de Sylvinha Telles. E se esbaldou no humor, chegando a escrever sua Ilíada, melhor Rosyadas, num achincalhe geral à turma da repartição, em seus tempos de funcionária da prefeitura. Piada, como se sabe, é datada – essa não foge à regra.

A pequenina obra poética de Rosy, sozinha, não escreve um capítulo da literatura paranaense. Não se pode dizer o mesmo da autora – por isso cada uma dessas páginas precisa ser preservada. Tudo o que ela fez interessa. Difícil a mudança de mentalidade em relação às mulheres, no Paraná, que não passe por ela. Em 1991, ao publicar o ensaio “As mocinhas da cidade”, na revista Leite quente, a francófila Maria Thereza Brito de Lacerda profetizou que era impossível escrever a história social de parte do século 20 em Curitiba sem passar por Rosy de Sá Cardoso. Difícil discordar.

Tudo teria começado na adolescência. Rosy cantava em casa, acompanhada ao piano. Mas na escola um professor implicou com aquele contralto no meio de uma lavoura de sopranos. Mandou que se calasse. Doeu. Em 1942, era preciso uma atração de estreia para inaugurar a Rádio Difusora de Paranaguá. Chamaram a tal menina. Não deixou de ser uma vingança. Em 1947, Rosy começou sua carreira na Rádio Guairacá, em Curitiba, cantando boleros. Tornou-se atração na boate do Braz Hotel, na Boate Encantada do Clube Curitibano e alvo do disse-me-disse, afinal, era uma moça de família tradicional. Em 1948, estava no Rio de Janeiro – ali cantou no programa de Ary Barroso e se deu bem. Um calo nas cordas vocais encerrou a carreira, trazendo-a de volta para casa.

Seu padrinho musical Aluísio Finzetto lhe arrumou um emprego no jornal O Dia – uma consolação pela carreira perdida. Tudo indica que as poesias dos primeiros anos eram boleros recalcados que não podia mais cantar. Até que descansaram no fundo de alguma gaveta. Havia mais o que fazer. No início dos anos 1960, Rosy era um nome da televisão nascente no Paraná. Fez longa carreira em jornais. Cruzou céus e mares ao trabalhar com turismo. Não cabe aqui esmiuçar. Nesse tempo todo, os versos ficaram quietinhos, como cabe à maioria dos poemas. Assim Rosy decretou que permaneçam. A regra é desobedecer – como ela nos ensinou a fazer.

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