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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Ando com ganas de es­­crever uma carta para a Maria Bethânia. Besta que sou, quero lhe dar uma sugestão – que grave um disco com o cancioneiro dedicado a Nossa Senhora Aparecida. Boto fé que iria para as paradas. Lembro, certa feita, de vê-la na televisão fazendo solo no coro da igreja de Santo Amaro da Puri­­ficação, numa das muitas bodas de dona Canô. Bethânia manda bem nos palcos, mas tenho para mim que nasceu para puxar o canto no altar.

Anos depois da palhinha na matriz, para minha surpresa, Bethânia gravou Cânticos, preces. Súplicas à Senhora dos Jardins do Céu (2000). Cheguei a pensar em transmissão de pensamento. Me esfolei atrás do CD feito um ro­­meiro do Círio de Nazaré. Mas não encontrei lá aquelas músicas que o povaréu esgoela nos cerimoniais de 12 de outubro. São canções ufanísticas, sob medida para cantar em procissão, debaixo do Cruzeiro do Sul, a nos fazer brasileirinhos. "Viva Mãe de Deus e nossa... ó Senhora Aparecida."

Essa fixação no hinário da Virgem Negra, juro, nada tem a ver com carolice. Como dizia aquela musiquinha do programa de calouros do Sílvio Santos, a santinha "é coisa nossa". Do contrário, não há como explicar sua onipresença nas fachadas das lojas, dando nome às avenidas, batizando nossas meninas. No Brasil, toda mulher é meio Car­­men Miranda, é meio Leila Diniz, mas também é meio Conceição da Aparecida – salvas das águas e milagreiras a granel.

Lembro das Cidinhas que co­­nheci e amei. Várias delas são tam­­­­bém Marias. Outras carregam Aparecida no segundo no­­me, quase sem lembrar que são Cidas na vida. De que me recordo, de todas ouvi a mesma ladainha: "Minha mãe era devota e..." Ser Aparecida é carregar a dívida de alguma promessa – pode ser por gravidez complicada ou, sei lá, porque a família devia na mercearia. Ninguém é Cida de graça, presumo.

Fiz uma lista. A primeira das minhas Cidas é a Figueiredo, a sá­­bia. Paulistana, quatrocentona, ex-bailarina clássica, ex-freira, óculos fundos de garrafa, ca­­be­­los prateados e uma pele tão bran­­quinha que eu me distraía tuitan­­do o mapa de suas rugas. Acha­­va a Cida uma entidade – e foi ela, num dia em que me vi em farrapos, quem me deu um livro: Um sen­­tido para a vida, de Victor Frankl. Nunca mais nos vimos. Mas a Cida aparece sempre que meus dedos passam pelo Frankl na estante. Leio a dedicatória em letra miudinha. Ainda faz sentido.

Minha segunda Cida é da Silva, a boa. Negra, empobrecida e evangélica, cuidava da limpeza do jornal. Custou a me dar trela. Mas fomos unidos por uma televisão. Na sala em que eu trabalhava havia um aparelho. Como lhe era proibido por preceito, ela começou a se demorar por ali um pouco mais, um olho no aspirador de pó, outro no Vale a Pena Ver de Novo. Cida falava quase na­­da. Era desse modo que se dava aos outros – em pequenas aparições nas quais repassava em gotas os mares que atravessou.

Foi assim, nos intervalos comerciais, que descobri por que vendeu a televisão e virou crente. "Eu levantava para fumar no meio da noite. O pastor me livrou disso", dizia. Logo suspeitei quais eram os sofrimentos da Cida envolta em fumaça e insônia. Nunca mais a vi – e rezo para que me apareça, com a voz entre dentes. Nesse dia, veremos novela, falaremos pouco e diremos tudo.

A terceira Cida é a Demarchi, a bela. Vendia artesanato no Lar­­go da Ordem, cursava Ciências Sociais na UFPR e tirava uns trocos posando para os alunos da Belas Artes, o que a habilitava para o posto de musa. Nunca houve modelo tão culta – enquanto a desenhávamos em lápis carvão, discorria sobre Max Weber. Suspeito que se contássemos que Cida tinha forma e conteúdo, poucos acreditariam.

Uma noite – ela ao centro, fa­­lando, os alunos em volta, desenhando, fomos flagrados por um segurança. Nervoso com a aparição da Cida desnuda, tran­­cou-nos na sala e desembestou feito doido pelos corredores. Rimos como pagãos. Anos depois, Cida me apareceu na Rua Pedro Ivo: os mesmos cabelos indomáveis, as saias ripongas. Não falou de sociologia, mas de amores e milagres. Sumiu na Barão, rumo à Marechal. Alguém a viu?

Por ela, pelas outras e pela Vir­­gem, dei de sonhar com Bethânia às Cidas a cantar.

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