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 | Antônio More/Gazeta do Povo
| Foto: Antônio More/Gazeta do Povo

Prezado leitor, enquanto você passa seus olhos ligeiros por essas linhas, o fotógrafo curitibano Brunno Covello, 32 anos, está a 4.313 quilômetros daqui, sendo apresentado ao Haiti pelo imigrante e ex-estudante de Engenharia Mecânica Marthatias Barthelus, 26 anos. Podem estar comendo mangas no pé – abundantes naquelas terras – ou batendo palmas nas portas de Porto Príncipe, tendo em mãos cartas e presentes enviados por sete haitianos que moram em Curitiba a seus familiares.

Os dois partiram no início da semana. As fotos nos aeroportos pelos quais passaram não escondem a verdade dessa travessia – um idílio afetivo em meio à assombrosa era dos refugiados. Uma aventura boa de contar. Um elogio ao carinho entre amigos, daqueles que fariam o psicanalista Erich Fromm abrir um novo capítulo no seu eterno A arte de amar.

O brasileiro Brunno e o haitiano Marthatias se conheceram em novembro de 2014, num dos lugares mais mágicos da capital paranaense – a Praça de Bolso do Ciclista, na esquina das ruas Presidente Faria e São Francisco, no Centro Velho. “Um haitiano me chamou atenção. Ele disse que aquela era a primeira vez que se sentia em casa no Brasil”, lembra Brunno, que fotografou com mesuras o retinto Marthatias – hoje um socialista bom de briga, com pendores para os estudos de antropologia. O que se seguiu foi praxe: o retratado quis saber a que se destinava a imagem e, em vez de dizer um sonoro “não”, pediu uma cópia. Rolou empatia – “ele é meu brother. Gosto do jeito que fala comigo”, resume Marthatias.

Filho do renomado fotógrafo Júlio Covello e da arquiteta Teresa Gomes de Oliveira (in memoriam), referência em programas de habitação popular na cidade, Brunno fez da saga dos haitianos um projeto solo. É sua obra. Iniciou-a com os retratos de uma reportagem sobre racismo e xenofobia contra os então recém-chegados. Sentiu-se convocado a agir. A partir daí, raro um sábado ou domingo que não saia, máquina a tiracolo, para fotografar a saga dos sobreviventes do abalo sísmico que varreu o Haiti em 2010. Perguntem do Brunno a um deles – todos sabem de quem se trata.

Brunno faz mais do que fotografar a saga haitiana, participa dela, com uma generosidade de fazer doer a nossa consciência

A coleção de fotos – hoje com perto de 5 mil imagens – mapeia o cotidiano desse povo em pensões, ocupações irregulares e repúblicas espalhadas pela periferia e região metropolitana. Como os pobres haitianos também se divertem, não faltam registros de folguedos, sempre com cor saindo pelas margens. É conhecida a determinação do fotógrafo em fugir do coitadismo. Em vez de vítimas, mostra seus personagens como vozes, que só quem é bobo se recusa a ouvir. Uma das séries mais impressionantes é a dos casamentos – cuja cênica faz qualquer boda brasileira parecer uma matinê de colégio de freiras. Um desses enlaces ocorreu na capela dos rígidos menonitas do Boqueirão. Também estrangeiros um dia, os alemães e holandeses da colônia não só emprestam seu espaço aos haitianos como começam a partilhar com eles a boa palavra. Essa vida que ninguém vê não é segredo para Covello.

O curioso foi que estivesse no Tatuquara, no Butiatuvinha, em Pinhais ou onde quer que os (talvez) 2 mil imigrantes se distribuem, sempre tropicava em Marthatias. O acaso virou uma mensagem do além. “Martha” virou o parceiro do brasileiro, fazendo-lhe as honras. Há muitos entusiastas da causa haitiana na capital – para citar três, o ativista Igo Martini, à frente da Secretaria Municipal de Direitos Humanos; a educadora Ciomara Amorelli, da Secretaria Municipal da Educação; e o economista Dimas Floriani, da Casa Latino-Americana. Mas talvez ninguém tenha conseguido mais acesso ao cotidiano desses beneficiados pelo visto humanitário que Covello. Ele faz mais do que fotografar a saga haitiana, participa dela, com uma generosidade de fazer doer a nossa consciência.

Meses atrás, em conversa com um dos muitos membros da comunidade, Brunno o convidou para subir até seu apartamento, no Alto da XV, dividido com sua mulher, Amanda, e a cachorra Lola. Formou-se um silêncio chato pra diabo. Não entendeu o vacilo do seu conhecido – pelo menos até saber que, com uns bons três anos de Brasil, o sujeito nunca tinha sido convidado a passar da porta para dentro. Emocionaram-se. Quem conhece Covello sabe da hiperatividade de suas glândulas lacrimais. A “primeira vez” daquele haitiano numa família virou uma epifania, dessas que parecem só existir nos filmes de Frank Capra. Do mundo nada se leva.

A comoção só não foi maior que no dia em que o telefone tocou, na sala do fotógrafo, e do outro lado da linha estava um agente cultural da Caixa Econômica Federal. Não era cobrança de dívida, mas a oferta de um patrocínio. Julgou uma pegadinha, mas que nada. Viu chegar a chance de editar um livro, montar uma exposição itinerante e fotografar um haitiano de volta à terra arrasada por tufões, surtos de cólera, terremotos, miséria e políticos. O escolhido a ir com ele só podia ser um – o onipresente Marthatias Barthelus, com quem tinha visto jogos de futebol, feito rodas de conversa e oferecido o ombro nas horas ruins, incluindo o rompimento com uma namorada brasileira que telefonava sem parar, uma tortura até para amantes dos mares do Caribe. “Amigo, como se diz em créole ‘posso fotografar você’?” Marthatias entendeu o recado: “Diz-se nwen vle fè yon foto pou ou ?”. Viajariam juntos.

Não foi uma decisão sem dor. O convite de Brunno veio no exato momento em que Marthatias tinha cansado de catar papel na ventania. O jovem alto, esportivo, sorriso Kolynos – pinta de cantor de rap do alto das correntes douradas e de um reluzente tênis vermelho – se preparava para embarcar em mais uma navilouca qualquer e entrar nos Estados Unidos. Os relatos sobre quem tentou e se ferrou fariam América, de Gloria Perez, uma novelinha das seis. Há violência, roubo e mortes nessa saga governada por coiotes. Marthatias – com ar grave – diz que não tem saída. Uma hora, vai.

Não há números seguros, mas o que se afirma aqui e ali é que os haitianos estão em fuga para o Chile e para os EUA. A contar pelo que se vê no noticiário, parte do grupo que chegou ao Brasil a partir de 2010 parece em diáspora. Podem estar se tornando nômades, informais crônicos, uma nação à mercê da caridade de estranhos. É fato que muitos entenderam que o Brasil não é para principiantes – a máxima de Tom Jobim – e se puseram mais em estado de luta do que em compasso de tartaruga. Marthatias não assina embaixo essa tese e surpreende ao dizer que os haitianos não estão em marcha para lugar nenhum, como se quer acreditar, mas em caravana de volta para o lar. Levarão conhecimento adquirido no êxodo, e reconstruirão o país. Não é um lobo solitário. Há quem com ele professe a mesma fé – o que faz suspeitar que se está diante de um fato para a história. E, dessa vez, com foto.

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