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 | Brunno Covello/
| Foto: Brunno Covello/

A família de Teresa Elvira Gomes de Oliveira – mulher que motiva este texto – cultiva estranhezas com nomes. Entre eles, há o nome de pia e o nome para usar no dia a dia. A tática devia ajudar muito nos tempos da Guerra Fria. Acompanhe: a mãe de Teresa se chamava Maria, mas era conhecida por “Teresa”. Sobram fatos e versões sobre esse caso consentido de dupla identidade, de modo que seus descendentes devem cruzar mais três gerações discutindo as alcunhas da matriarca. A propósito, dona Maria era avó do Jorge Brand, o Goura Nataraj.

Maria, a “Teresa”, batizou não uma, mas duas de suas filhas com o nome que amava. Chamou-as Teresa Elvira e Teresa Cristina. Dá para imaginar o grau de dificuldade na hora, sei lá, de arrebanhá-las para o lanche. De modo que a primeira virou Vizi; a segunda, Tina. A estratégia deve ter ajudado na logística daquele teresário que crescia à sombra dos cafezais de Jacarezinho, no Norte Pioneiro. Mas não se apaga com borracha um nome dessa envergadura. Eis a história.

Estavam em momento de retomada – ele juntando os estilhaços deixados pela repressão; ela tendo de se virar sem dona Maria

Durante 35 anos, a arquiteta e urbanista Teresa Elvira Gomes de Oliveira trabalhou na Companhia da Habitação de Curitiba. De 1981 para cá, não houve na capital paranaense conjuntinho, regularização fundiária ou reassentamento do qual não participou. Nem existe líder comunitário num raio de 30 quilômetros com o qual não tenha se sentado para prosear, camarada, como se tivessem dançado juntos no Baile do Texas. O Edson do Parolin? Seu chapa.

Ponha-se no imenso mapa afetivo de Teresa o projeto Bairro Novo, que transformou uma grameira de 4,2 milhões de metros quadrados num bem-sucedido loteamento popular para 11 mil famílias. O Conjunto Atenas – o dos tijolinhos à vista e dos lambrequins. O Caiuá. O Augusta. Como não era de gabinete, falava do Bolsão Formosa ou do Bolsão Audi-União com a mesma intimidade com que descrevia o edifício em que morava, o Palacete Graças a Deus, construção das antigas, na subida da Rua XV de Novembro.

O local estava fadado a virar migalha, mas Teresa gamou no piso de madeira, na larga janela aberta para o mundo. Adotou e cuidou do palacete. Era seu ponto de partida. Dali saía para medir Curitiba na sola dos pés. Como prova de sua itinerância, mantinha um par de botas surradas, no piso do automóvel que a conduzia à periferia. Se acumulasse milhagens, chegaria à Lua.

É provável que nem suas quatro irmãs, nem o irmão, nem tampouco seus guris [Gabriel e Brunno] soubessem que Teresa ia mais longe que notícia ruim. Ao fim da jornada, ao pôr a mesa, gostava de contar onde diabos tinha se metido. Parecia que estava falando de vilarejos à margem do Velho Chico. Poucos conseguiriam identificar no mapa a Vila Estrela, a Bom Menino, as “Malvinas”, o Morro do Piolho, a aldeia Kakané Porã ou a maioria das 250 e tantas ocupações irregulares da capital, todas parte do batente de servidora pública.

Ano passado, seu caçula, o jornalista Brunno Covello, foi fotografar a recém-regularizada Vila 23 de Agosto, no Ganchinho. Tudo corria como o esperado até ele comentar que a mãe era da PMC. Ao saberem de quem se tratava, armou-se o vespeiro naqueles rincões. “Gente, ele é filho da Teresa da Cohab”. Fez-se fila para cumprimentá-lo. Ouviu falas embargadas de gratidão, lembranças à Teresa, recomendadas por Veras, Arletes e Joelmas da ocupação. Foi como se tivesse violado uma vida em segredo: então era por eles que ela chorava e se alegrava ao pôr o jantar.

Teresa Elvira Gomes de Oliveira era adolescente quando sua mãe morreu num acidente de automóvel, perto do Natal de 1974. Dona Maria tinha 40 anos. Foi como se a bela família de Nilton Gomes de Oliveira, o mítico delegado Caxambu, tivesse virado sal de fruta Eno. Não muito tempo depois, já acadêmica de Arquitetura na UFPR, Teresa se casou com o fotógrafo Júlio Covello, um egresso da guerrilha urbana no Rio de Janeiro, íntimo de siglas como ALN, VPR e MR8, ex-preso político cuja ficha incluía retaguarda no sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, em 1970. Para começo de conversa.

Os dois se conheceram no lotação, a caminho do Cursinho Positivo. Estavam em momento de retomada – ele juntando os estilhaços deixados pela repressão; ela tendo de se virar sem dona Maria. São um filme lindo as fotos do casal na Ilha do Mel ou batendo papo com amigos encostados a um muro numa tarde vadia. Trilha sonora: Stones e Joe Cocker, Chico e Caetano.

A lida na Cohab começou com um bico, arrumado pelo amigo Almir Feijó. Ali dividiu as pranchetas com mitos da habitação– os arquitetos Rafael Dely e Lóris Guesse. Foi de uma vez para sempre. Sentia entusiasmo pela obra dos colegas. Na última entrevista, dada à Gazeta do Povo em 1.º março, não se permitiu um pio de autoelogio – só a eles. Limitou-se a mostrar uma homenagem, dada pela turma do Xapinhal – uma das muitas zonas favelizadas na qual batalhou, teto de 1,7 mil famílias. “A Teresa arrumou moradia para meio mundo”, ouviram os filhos, no velório da mãe, em 28 de abril. Um câncer passou a rasteira em Teresa. Foram 11 meses entre o primeiro sintoma e a partida. Tinha 58 anos.

No soberbo documentário Nós que aqui estamos por vós esperamos, o diretor Marcelo Masagão diz que uma guerra não mata apenas um soldado, mata alguém que gostava de macarrão, um que coleciona postais, outro que cantava bingo na quermesse. Teresa gostava de almoçar aos sábados no Ponte Vecchia. De pizza de manjericão com alcaparras, da Baggio. De saudar o sol. De organizar festas. Colecionava caixinhas – tinha-as aos montes pela casa, sempre com algo dentro: uma semente, uma conchinha trazida da praia do Campeche, onde planejava viver; uma pedrinha do Xingu – a viagem mais admirável que fez. Suas manas Margarida e Tina calcularam que por muitos tempo ainda abrirão caixinhas e descobrirão a surpresa que Vizi deixou lá dentro.

Se fosse um personagem da literatura – que ironia – penso que Teresa seria a “mulher sem nome” de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Lembram? Em meio a uma epidemia que rouba a visão de todos, ela é a única que ainda consegue enxergar. Resta-lhe conduzir pelo ombro uma fileira de deserdados no meio do caos. Ao final do romance, quando os cegos começam a ficar sãos, teme ter chegado sua vez. Me contaram que, de repente, Teresa sentiu que os sapatos não lhe cabiam mais, como se tivessem sido trocados por algum peralta. Noutra ocasião, bem ela, perdeu-se pela cidade e não conseguiu voltar para seu endereço. Aos poucos, restou o silêncio e a força do nome Teresa.

Agradecimentos a Brunno, Júlio, Margarida, Tina, Geraldo Pougy, Célia Raquel, entre outros que seguraram a onda e aceitaram dar seu depoimento.

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