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Estou procurando apartamento novo. A família cresceu, precisamos de mais um quarto, e os corretores me enviam listas e mais listas de imóveis vazios. Aliás, falei em apartamento novo, mas só me agradam os mais velhos, aqui mesmo, no Centro. São muitos, e tenho me lançado a uma rotina labiríntica de visitações, saindo de um imóvel para cair em outro, exatamente como naquele verso de Silvina Ocampo: “com a beleza e o horror como guias”.

Mas o que procurar num apartamento vazio? Luz, vista, horizonte. Primeiro olhamos pela janela da sala, avaliando a vizinhança. A proximidade das outras janelas, o destino dos terrenos ao redor. Ali, um casarão antigo. É ruim: logo seus habitantes estarão mortos, e tudo vai virar comida de escavadeira. Mais adiante, um estacionamento. É bom: talvez ele não se torne um prédio nos próximos dez anos, me roubando a vista da Serra do Mar.

Sim, somos proprietários das vistas. Donos do contorno azul da Mata Atlântica e de cada onça a se extinguir naquelas montanhas. Todos os dias nos furtam um trecho da paisagem, uma muda de manacá, um filhote de graxaim. Mas não, não há delegacia que registre queixas dessa natureza.

Nunca pensamos tanto no sol como quando estamos comprando um apartamento

E o sol? Nunca pensamos tanto nele como quando estamos comprando um apartamento. Olhamos para o leste, feito astrônomos experientes, marujos de cinema, e vamos desenhando com o indicador, no céu, o arco a ser percorrido pelo astro-rei até sua tumba no oeste. Calculamos o quanto de sombra teremos na área de serviço, antevendo um futuro infeliz entre os fungos. Porque temos direito ao sol e à face norte. Em Curitiba, a face norte é um sonho. O sol é o ouro dos curitibanos. Se fôssemos místicos imaginativos, nosso paraíso seria um garimpo no firmamento, quente e dourado.

Depois checamos os cômodos, um a um, tentando priorizar questões práticas de engenharia, e não a qualidade das vidas que se levaram por lá, desde meados do século 20, ou o cadáver das dinastias que se formaram e perderam em cada cama. Mas nos desviamos. Alguém escolheu, para esta cozinha mofada, estes azulejos com frutas tropicais. E aquele papel de parede estampado de arabescos, alguém o achou bonito um dia, e quem sabe o tenha elogiado em voz alta. Pois é, estas paredes, que já tiveram ouvidos, hoje têm apenas memórias. Dormem, suam, e talvez sonhem.

Nos armários, encontramos coleções inteiras de objetos esquecidos. Sobreviveram a quem os comprou (quase tudo que compramos sobreviverá a nós). Um cinzeiro de vidro azul. Chaves cujas fechaduras deixaram de existir. Um skate no closet de uma senhora falecida. O adesivo de um finado candidato a vereador numa lasca de espelho. E os vinis de bolero de um homem que, agora, mora num caixão, assim como a música de seus mortos jaz num caixote.

Livros, no entanto, são difíceis de achar. No bidê desta suíte, o umbral das leituras, um volume de Chico Xavier vai amarelando. Detonado, ele espera por uma justa, mas improvável reencadernação.

Apartamento após apartamento, é a mesma sucessão de paredes nuas, sulcadas pelo delta de mil infiltrações. E às vezes, nesta quilométrica galeria de abandonos, nos surge um quadro renegado, uma empoeirada Santa Ceia. Você se aproxima dela e vê, pendurada no dedo de Tomé, dançando com a brisa, a pele vazia de uma aranha-marrom.

Num rodapé ali perto, você sabe, aquela aranha está viva, em obras, dormindo, talvez sonhando, ou sendo sonhada. E, por um segundo, estudando aquela casca oca, translúcida e quase imóvel, você fantasia ter finalmente descoberto o seu novo endereço, a beleza e o horror reformados. Um lugar perfeito onde estocar o veneno para os seus últimos dias.

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