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No Mercado Municipal, a esquina dos aquários magnetiza as famílias exaustas. É para lá que rumam os pais de filhos pequenos, na esperança de que os peixes intercedam por eles, salvando a manhã de compras. Criança nenhuma suporta o tédio das longas expedições comerciais. Sábias, não toleram a negociação parental com tantos vendeiros, a guerra das pechinchas ou a ideia de que o mundo dos adultos é mesmo ordenado por uma cartilha de acordos tão chatos, convencionais.

Já os aquários, com sua iluminação de teatro, representariam uma esperança. Não, nem tudo será combinação e monotonia. Ainda há seres flutuantes, e estas paredes d’água, esta translucidez que se opõe às turvações cotidianas. Inocentes, as crianças só deixam de reparar que, no canto dos vidros, estampa-se um preço para cada espécie. Umas não custam nem dois reais por unidade; outras ultrapassam os dois mil. Em nossa sanha adâmica, não só batizamos as criaturas. Também estipulamos o valor de cada uma.

Os peixes não se importam com a gente. Será um defeito nosso, de aparência, carisma, relevância?

Nossas reações diante do aquário, porém, são infantis ou epífanas. Aqui ao meu lado, por exemplo, dois homens discutem. É sempre instrutivo ouvir discursos apaixonados, e por isso me aproximo. Os sujeitos teorizam acerca de uma suposta prevalência dos peixes de água salgada sobre os de água doce. Um deles diz que o mal dos dulcícolas é que lhes falta colorido. E aponta, trêmulo, para um aruanã-prateado. Veja, exalta-se, ele é lindo, mas cadê as cores, o escândalo, a beleza superior? Diz isso como se o aruanã fosse um facínora, a ser julgado por crime de monocromatismo.

Diante de tamanha convicção, seu interlocutor se cala, desiste de argumentar. Sente que recebeu uma revelação: também não somos bichos naturalmente ornamentais. A exuberância, para os humanos, é tanto um desvio quanto uma meta.

Mais adiante, acompanhada da mãe, uma menina observa os paulistinhas. E logo descobre, entre eles, um cadáver laranja. Sim, as crianças são sempre as primeiras a perceber os defuntos no aquário, aqueles indivíduos de barriga para cima, apartados à força de seu cardume e de sua época, estorvando o consenso, o movimento da massa e seus efeitos, os avanços e recuos da coletividade.

Olha, mamãe, esse aqui morreu, lamenta a menina. Em seguida corre os olhos ao redor, atrás de novos mortos, nos aquários vizinhos. Encontra um peixe rude e bem vivo, de olhos vermelhos, com um enorme calombo na testa, nem sei se imponente ou só agressivo. Sentencia: parece o papai. A mãe ri, mas um riso meio nervoso, como se recapitulasse antigas decisões, onde é que eu estava com a cabeça?

Os peixes, por sua vez, não se importam com a gente. Será um defeito nosso, de aparência, carisma, relevância? Vejam como se adaptam aos objetos com que decoramos seus lares. Uma caveira dourada, um navio pirata naufragado, uma lula de plástico, tanto faz. Nem ligam. Os peixes se amam, dormem, matam e morrem no oco dessas peças, e talvez nos concebam apenas vagamente, enquanto sonham. Somos demiurgos cafonas, divindades embaçadas, de gosto e juízo duvidosos. E o que mais poderiam pensar a nosso respeito? Nem todo animal tem a nossa sorte, o direito de escolher seus próprios deuses.

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