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O velho se apoia numa bengala torta, o eixo provisório do seu mundo. Aos poucos, vai abraçando a árvore jovem na qual se escora, cuidando para não cair durante o processo. A árvore é baixa e se verga perigosamente sob o peso do homem. Ao abraçá-la, o velho muda não só de eixo, ou mesmo de mundo, mas nos revela a intimidade de um desejo cifrado, talvez o seu último: trocar a madeira morta pela viva. Sim, de tão óbvio, seu desejo está nu, como o rei da anedota.

Diante dele, estende-se o parquinho do Passeio Público. É sábado, quase noite, e há crianças por toda parte. O velho nem as vê, sozinho com sua árvore e sua bengala, indeciso entre ambas. Não enxerga o próprio neto, que o trouxe passear e que agora, ali perto, conversa com uma amiga, buscando convencê-la a experimentar o gira-gira.

Suas vidas, hoje, são exatamente isso, um intervalo entre beijos

A blusa de tricô do velho é bem mais velha que o menino. Terá, no mínimo, duas décadas. Esgarçada, a barra lhe chega aos joelhos. O velho não se incomoda com as roupas, as sandálias lasseadas, as meias de lã que não combinam. Se estivesse nu, como seus desejos, talvez nem notasse a diferença, e nem frio sentisse. Desatento, desenha ou escreve alguma coisa na areia, com a bengala, mas tudo que consegue produzir são linhas irregulares, trêmulas cobrinhas.

O neto e sua amiga, claro, não são mais crianças. Adolescentes, esquecem do velho, e como censurá-los? A menina se acomoda no gira-gira e o menino promete rodá-la como ninguém jamais rodou. Prepara o impulso, mas o brinquedo o surpreende, é pesado demais, e seu eixo resiste, teimoso, não se deixa girar facilmente, move-se numa rotação entediante, áspera, inimiga das velocidades, das vertigens. Trata-se de um gira-gira adaptado para cadeirantes, só que o casalzinho não liga para isso, como também não ligou para o aviso de que o parquinho só aceita menores de dez anos. No fundo, ainda curtem a infância.

A moça ri do fracasso do moço, é um fracasso fofo, e ele também ri, mas não desiste, as bochechas se avermelhando de esforço e vergonha. Ela o faz parar, levanta do gira-gira e corre pela areia, vem, vamos comprar algodão-doce, e escolhe um amarelo, sabor de abacaxi. Paga e ganha de brinde uma máscara do Pikachu, o que os faz rir mais uma vez, agora sim feito crianças de dez anos, discutindo seus pokémons favoritos. Quando começam a mastigar, porém, e o olhar de um se fixa no do outro, emudecem de repente, e fingem que já são bem crescidos.

O parquinho, então, se esvazia. Não porque seja noite, ainda temos alguns minutos de luz, mas porque os adolescentes conseguiram forjar, ao redor daquele silêncio, um deserto para dois, e é entre estas dunas que eles se beijam, as bocas recém-adoçadas. Ah, é tão fácil perceber, não é a primeira vez que experimentam este giro rápido de línguas: suas vidas, hoje, são exatamente isso, um intervalo entre beijos, a expectativa do próximo e a lembrança do último, o que mais?

Tão diferentes do avô, que não os vê e nem pensa em beijos, embora continue tentando penetrar o chão com sua bengala torta, abraçado a esta árvore tão jovem, e que perigosamente se verga sobre a velhice dos grãos de areia.

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