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Dizem que Michelangelo mandava seus ajudantes buscar estátuas entre as rochas. Para ele, certos blocos de mármore, ainda brutos, já trariam lá dentro, prontas, as suas esculturas. Ao artista bastaria resgatar a obra de seu esconderijo mineral, ser um parteiro das pedras. Era uma ideia louca, mas bonita, e, embora eu não creia nela, nada me impede de propô-la. Ou de pensar no que pode estar guardado, para nós, no interior de cada pedra.

As pedras nos aturam. São levadas de lá para cá, perfuradas, implodidas, presas à determinação dos que planejam nosso futuro. E só as aceitamos sob a forma de calçamento, altar, pia, soleira, lápide, arte, joia, latrina. O petit-pavé, por exemplo. É pedra triturada para os nossos pés. Se ali dentro, antes, havia fortuna melhor, vida mais fulgurante, os ajudantes de Michelangelo não chegaram a tempo de salvá-la.

As pedras nos aturam. E só as aceitamos sob a forma de calçamento, altar, pia, soleira, lápide, arte, joia, latrina

Era nisso que eu pensava às seis da tarde de sexta passada, quando trazia minha filha da escola e vi um homem carregando uma pedra. Ou pelo menos é o que ele parecia estar fazendo. Atravessávamos a Ermelino e, do nosso lado, fora da faixa, vinha esse sujeito, metido num casacão escuro, no mesmo tom cinzento de sua barba. Trazia algo pesado e disforme junto ao peito, dentro de um embrulho, e sua figura, curvada pela carga, me fez lembrar a de um penitente avarento, apaixonado pelos próprios castigos.

Pois quando esse homem escalou, com o pé direito, o meio-fio do Largo Frederico Faria de Oliveira, foi como se acionasse algum mecanismo de desligamento interno. Fim, acabou-se, ponto final. Esbarrou numa armadilha mágica, pisou numa mina íntima, não sei. Fato é que simplesmente petrificou-se debaixo dos jacarandás.

A transformação veio acompanhada pelo barulho do pacote em seu colo sendo amassado. O pé esquerdo da estátua ficou suspenso no ar, e a sola de seu sapato exposta para trás, sobre o asfalto da Ermelino. A posição era incômoda e seu equilíbrio, precário, mas o homem nem tremia: se escorava talvez com os olhos, fixos no chão, um olhar tão agudo que lhe servia de bengala.

Minha filha se maravilhou. E exigia uma explicação para o fenômeno, caso contrário não seguiria adiante. Tentei improvisar uma teoria, tive dúvidas, não sabia se o homem era um artista performático ou um pobre maluco surtado. À volta dele, o povo se juntava numa curiosidade divertida. Eram seis da tarde de sexta, já disse, e o lugar fervia de gente com pressa, mais interessada em evaporar-se do que em virar rochedo. Mesmo assim, a esquina foi se tornando um coágulo humano, e a corrente de pessoas entre nós era cada vez menos fluida, quase gelatinosa.

Cinco minutos, e o homem nem piscava. Cansei de esperar por sua reanimação, puxei minha filha e cruzamos a Cândido Lopes, ela protestando. De longe, vimos que a cena ganhava uma força extra, teatral: agora, todo o largo havia sido tomado por espectadores imóveis. A imobilidade da estátua original, pioneira, contaminava o ambiente, e a única coisa que ainda se mexia, alheia à paralisação geral, era o trânsito.

Foi a menina quem notou: os carros continuavam a passar, aos montes, imunes à nossa perplexidade, e não duvido que se guiassem sozinhos, transportando motoristas de granito, cidadãos de areia se esfarelando ao volante.

Fugimos de lá, rindo dessa ideia, mas, do homem que primeiro virou pedra num meio-fio da Ermelino, não tivemos mais notícia. No sábado de manhã, corremos ao largo e não o vimos, nem o seu pacote. O que não quer dizer que tenha partido de verdade ou sido carregado dali. Uma hipótese é que tenha se polido ou lapidado a tal ponto que descobriu, dentro dele mesmo, a tessitura da plena transparência.

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