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Passo diariamente com minhas filhas pelo Cemitério Luterano, e uma de nossas distrações é ler o que o povo picha naqueles muros. Não me interessam tanto os grandes pichos, e sim as inscrições mais tímidas, os namorados que gravam seus nomes ali, na pedra que cerca o território dos mortos. Usam caracteres miúdos e evitam o clichê dos coraçõezinhos, desprezando Cupido e a transversalidade de suas flechas. Preferem a letra X, simples e ambígua, que os une e opõe num mesmo combate, ou quem sabe os multiplique, obedecendo à matemática impositiva do Éden.

Perdão, mas isso me comove. Afinal, o muro do cemitério é também uma lápide. Um memorial coletivo, coberto de tinta, musgo e dentes-de-leão, a vida se espremendo em suas trincas. Minha filha mais velha, aliás, que não faz qualquer restrição a cemitérios, sempre colhe por ali um buquezinho. Depois vai assoprá-lo, orgulhosa, lá de cima da ponte sobre a Nicolau Maeder.

A humanidade guarda suas tumbas como quem defende uma fortaleza, um tesouro perecível

Mas o muro do cemitério não é só isso. É também arame laminado, cerca elétrica. Não há mais gato preto ou coruja que se aventure sobre ele. O agouro deu lugar a questões prementes de segurança. E a humanidade, hoje, é esta espécie que guarda suas tumbas como quem defende uma fortaleza, um tesouro perecível.

Cemitérios são laboratórios subterrâneos, locais escuros de metamorfose, sítios de alquimia natural. Lá dentro tudo se transforma; aqui fora é que as coisas se mantêm meio iguais, nesta rotina de ir e vir que nos dá a ilusão de avanço e mudança. Nada: somos amostras na prateleira, fazendo hora sob o sol.

Ou será que tanta precaução é para evitar que os mortos fujam? Nem que pudessem. A gente põe muro em volta de casa, quartel, cadeia, cidade. Quem está dentro está seguro ou preso; quem está fora, excluído ou livre. A gente não escolhe de que lado fica nem como se sente. É coisa que acontece, estar ou sentir-se dentro ou fora da vida.

Do muro do cemitério, de um vazamento qualquer, também brota água. As aves aproveitam para tomar banho lá, e um ou outro cachorro bebe do caldo que se empoça na calçada. Os humanos não. Nos esquivamos, saltamos a poça como quem vence um fosso de crocodilos, um manancial envenenado. Só uma vez vi gente naquela piscininha. Um guri que correu da mãe e se atirou lá, de quatro, num estouro de criança calorenta. Espalmou a lama, disposto a lambê-la, um gato diante do pires. A mãe cuidou de lhe dar uma surra. A infância é tão confusa quanto poderosa, teme mais a mãe que a própria morte.

Perto do portão, às vezes, também encontro uma gamelinha de barro, bem limpa, o despacho já consumido pelos pombos. Duas semanas atrás, um deles, encardido, a pança cheia, achou boa ideia se aninhar na cena do crime, dormir no prato vazio. Não sou de crer em sortilégios, mas o fato é que o pombo tanto relaxou que morreu na gamelinha. Parecia feliz, somente meio surpreso com tamanha reviravolta.

Um dia farei companhia a este pombo perplexo, eu sei, paciência. Por ora, apenas passo pelo muro do cemitério, com minhas filhas. Como quem passeia por uma praia de interior, às margens de um rio bonito, largo, aparentemente calmo, mas onde só se deve mergulhar aos poucos. O curso do tempo é um rio de piranha.

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