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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Acho que são alfeneiros, carregados de frutinhas pretas, em cachos. É junho, as ruas por onde ando estão cheias deles, e admito que isso me alegra. Trata-se de uma alegria besta, mas quem sou eu para desprezá-la? Os passarinhos é que são bons nisso de disfarçar a felicidade. Se entopem de bagas, fazendo de conta que nem gostam. Depois, alegres e tolos, sobrevoam a cidade e se aliviam sobre nós, tingindo de roxo o capô dos automóveis.

Não, não costumo menosprezar uma alegria. E nem tudo em meu caminho é alegre, vocês sabem. Já falei do Cemitério Luterano. Volta e meia, na Ivo Leão, nos fins de tarde, cruzo com o povo que sai dos enterros. Aglomeram-se na calçada, curtindo aquele instante de alívio, quase feliz, que sucede o sepultamento de alguém que nos foi caro.

É a hora da distensão. O velório acabou, e com ele as cortinas de fumaça. Os sorrisos embaraçados, as piadas e lendas sobre o morto, o dever de permanecer firme junto a um corpo que já não pertence a ninguém, somente à natureza. Encerrado tudo isso, encomendada a alma e cimentado o túmulo, só nos resta o portão da rua, um relaxamento temporário, sim, ainda não foi hoje que nos barraram a saída, mas quando será?

Ainda não foi hoje que nos barraram a saída, mas quando será?

Lá fora, prolongam-se os abraços, a conversa cotidiana, fala-se de trabalho, de amigos sumidos, do consolo que devemos uns aos outros, de tempos melhores, passados ou futuros. Depois é o quem-vai-com-quem, quem está de carro, quantos cabem no seu, quem leva a tia, eu levo, nos vemos lá. E lá, na casa que foi do morto, juntamente com a noite, uma lacuna começa a se instalar, uma nova ordem vem arrumar a cama da saudade, aquela que jamais será desfeita.

São tantas as visitas, é preciso passar o café, e aqui está ela, insistente, a vida do falecido, sua caneca favorita, a gaveta de talheres que ele organizou, o avental de churrasco, o prato sujo na pia, a bandeja de remédios e até o gato, coitado, dormindo naquela ponta de sofá onde, por semanas ou mesmo meses, ninguém ousará sentar.

Sair do cemitério é fugir, é bom. Entrar, depende. Semana passada, fui buscar minha filha na escola e cheguei meia hora antes. Como não tinha comigo livro algum, fui ler as lápides, os epitáfios, os sobrenomes alemães no Luterano. Túmulos baixos, discretos, que nos dão uma visão ampla de quase todo o terreno.

Lá dentro, só havia eu e, duas quadras adiante, outro homem, da minha idade, trazendo uma papelada sob o braço. Vagando entre as tumbas, pensei que ele as vistoriasse, só que não: estava interessado era em mim. Me afastei dele, mas o homem, com a teimosia de um zumbi, veio vindo para o meu lado. Ao me alcançar, disse, gentil: “Boa tarde, você é novo aqui?”

Só estou de passagem, desconversei, e saí do cemitério. Na calçada, numa poça de sol, outro homem se espojava sobre seus panos e trouxas, absorvendo os restos de calor do dia, tão precários. Sensual, ria para o céu, entre as cascas e sementes de um mamão recém-comido, os dedos no zíper da calça.

Um sujeito passou por ele e, senhorial, apontou o muro do cemitério: “Quer morrer, é ali dentro!” Ao que o outro apenas informou, tolo e alegre: “Mas acabei de nascer!”

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