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Criança, ouvi pela primeira vez a história do sermão de Santo Antônio aos peixes. Duvidei, claro, sempre fui de duvidar. A quem não conhece o caso, vou resumi-lo aqui, mais ou menos como o ouvia na infância. Antônio tentava pregar aos homens de uma cidadezinha qualquer e estes se recusavam a lhe dar ouvidos. Farto daquela rejeição, voltou-se para o mar e convocou os peixes, que se revelaram a melhor das plateias.

O santo português estava em Rimini, na Itália. O episódio, portanto, teria ocorrido há quase mil anos, numa praia do Adriático. Já adulto, li parte do que seria o sermão original de Antônio, me divertindo, em especial, com um trecho em que o orador louvava nos peixes duas qualidades que considerava superiores: eles ouviam e não falavam. Além disso, não disporiam de raciocínio, memória ou desejo.

Curitiba era sua Rimini, a aldeia surda e herética, e a Pracinha do Amor, seu Adriático

Sim, são várias, na verdade, as versões e as fontes onde vão beber e se afogar as lendas, e muitos os propósitos por trás delas. Até eu, ao recriar esta cena, devo ter um objetivo oculto. Não sei qual seria, mas, de todo modo, me resta uma certeza: sempre fiz bem em duvidar. E se me perguntarem por que volto, hoje, a uma história da qual duvido, respondo fácil: é porque no sábado, ao visitar minha velha Pracinha do Amor, encontrei um homem que me lembrou o Antônio dos peixes.

O sujeito discursava para os pombos. Sentado num banco da praça, o rosto afogueado dos que já cansaram de se explicar, vociferava. Lançava às aves um punhado de frases desconexas. Os pombos não fugiam dali porque alguém, talvez o próprio vociferador, havia forrado a calçada com farelos de pão. E suportar as preleções e as queixas da humanidade, vocês sabem, é somente um dos preços que os pombos pagam por aceitarem nossos refugos.

O homem subia e descia do banco, se ajoelhava, apontava o céu, xingava. A certa altura, jogou o boné no chão, e os pássaros, habituados à ceva e à miséria, logo cercaram o objeto, atrás de mais comida. Olhei ao redor: nenhum outro ouvido humano por perto. Ouvir e registrar aquele sermão era não só uma oportunidade, mas um dever deste cronista. Fui me aproximando, na expectativa de testemunhar um evento histórico e, quem sabe, poder transmiti-lo à posteridade, transformar a fala de um sábio num documento escrito e fornecer, às pessoas de bem do quarto milênio, uma lanterna com que iluminar as trilhas que aqui, no presente, vamos ajudando a obscurecer.

Mas não. O homem dizia apenas que já tinha avisado Fulana; acerca de quê, não disse. Dizia que agora era tarde, e que de nada adiantavam rogos e providências, e que sua mala já estava pronta, e que ele não era nenhum palhaço, alguém ali estava vendo um palhaço, alguém ali estava vendo, ouvindo, pensando, sentindo qualquer coisa?

Curitiba era sua Rimini, a aldeia surda e herética, e a Pracinha do Amor, seu Adriático. Os pombos arrulhavam, nenhuma novidade, arrulhar é o que se espera deles. Um cara surgiu na Ébano Pereira, caminhando rápido, e parou no ponto de ônibus sob as tipuanas. Não nos viu nem ouviu. Afoito, digitava algo em seu celular de um bilhão de bocas. E era como se, ao discursar, com os dedos, também ciscasse.

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