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Os sabiás são sempre os mesmos, quem muda são os cronistas. Foi algo que me ocorreu semana passada, numa tarde de calor, enquanto andava pela Cândido Hartmann. Fazia um sol de rachar passarinho, o céu estava zerado e eu portava um guarda-chuva, o que pode, admito, pesar contra a acuidade desta narrativa. Mas é que a moça do tempo nos havia prometido uma tempestade, e eu fiquei à espera. A prudência, afinal, é um dos melhores disfarces da tolice.

Mas eu falava de sabiás e cronistas. Ou, sendo menos específico, de pássaros e escritores. E falava da constância de uns e da inconstância de outros somente para lhes contar que, naquela mesma tarde de sol na Cândido Hartmann, uma senhora me flagrou dando um chute de trivela num sabiá.

Não foi um chute libertador, adianto, como aquele que Valêncio Xavier desferiu contra uma pomba, numa rua que o escritor preferiu não registrar. Explico. Consta que certa vez, depois de ler um livro do Karam, o Valêncio foi tomado por uma intensa sensação de liberdade mental. Por isso, ao deparar com uma pomba que lhe cruzava o caminho, o Valêncio, livre de qualquer remorso ou vergonha, simplesmente lhe meteu um pé na bunda.

A briga devia ser de morte e o caso, de amor, pois nem ligaram para mim

Meu chute foi diferente. Nada a ver com livros ou liberdade. Quando eu vinha pela Cândido Hartmann, só pensava no calorão. Cansado de carregar um guarda-chuva inútil, decidi abri-lo e passear à sombra. Parei debaixo de uma extremosa e bebi um gole de água mineral. Depois apertei o botão do guarda-chuva, que floresceu estrondosamente. E então, de um galho baixo da árvore, desabaram dois sabiás.

Engalfinhavam-se. A briga devia ser de morte e o caso, de amor, pois nem ligaram para mim. Sou incapaz de narrar a luta em detalhes, lamento. Seria preciso inventar toda uma nomenclatura para tamanha quantia de golpes e rodopios. Mas posso afirmar, sim, que uma das aves, a menor, ia perdendo uma parcela importante de suas penas escapulares, terciárias, coberteiras e supracaudais.

Mesmo comovido, não me envolvi. É o sangue curitibano. Os sabiás rolaram da calçada ao meio-fio, onde o mais forte imobilizou o mais fraco, apertando-lhe a garganta com o bico. A coisa se aproximava de um mau desfecho, e confesso que eu, já torcendo por uma reviravolta, por pouco não comemorei quando o sabiá menor enfim escapou daquele delicado mata-leão.

E então aconteceu. Não sei se o passarinho estava cego de dor, ou desnorteado demais. Sei que correu para mim e se postou junto ao meu pé direito, o meu pé bom, como se pedisse proteção a um mano mais velho. Eu era o seu último recurso. Ele estava entregue, pronto para o abate, as defesas neutralizadas. Me senti solicitado.

O outro sabiá não amarelou. Voltou a subir na calçada, impetuoso, e achei que finalizaria o rival. Decidi intervir, e aí mandei a trivela. O corpinho da ave subiu, descrevendo um lindo arco pelo ar, até o meio da rua. Na verdade, eu não buscava um efeito, nunca busco. Chutei com os dedos de fora mais por hesitação que por exibicionismo.

A fera caiu nos paralelepípedos, mas logo decolou, íntegra. Sua vítima aproveitou o lance para fugir, escondendo-se num canteiro de dálias. Emocionado, permaneci imóvel por alguns segundos, o guarda-chuva aberto. Fazia décadas que não me metia numa briga. O que me tirou da pasmaceira foi um grito. Era a tal senhora, que passava num automóvel: “Não tem vergonha de chutar um passarinho?”

Ela não ficou para ouvir a resposta. Se ficasse, eu lhe diria que tinha vergonha, sim, e que a partir daquele dia, eu, o cronista que chutou um sabiá numa tarde de primavera, nunca mais seria o mesmo.

E aí começou a chover. Mas só debaixo do meu guarda-chuva.

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