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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

O velho imigrante judeu sobe as escadas da Catedral da Sé e atravessa a grande porta. Está desesperado e busca ajuda. Recorre à Sé porque lá dentro está dom Paulo Evaristo Arns, que oferece acolhida a pessoas como ele, o senhor Kucinski, cuja filha – uma professora da USP – está desaparecida.

A cena está no livro K, de Bernardo Kucinski, que conta a jornada de seu pai em busca da filha que militava em um grupo de oposição ao governo militar e foi sequestrada, torturada e morta. O velho Kucinski não tinha ideia de que coisas como aquela estavam acontecendo no Brasil até que, pouco a pouco, conforme a busca avançava, descobriu um mundo subterrâneo de repressão em que as pessoas sumiam.

Conto a cena do judeu chegando à catedral católica da forma como ela ficou na minha memória. Já faz alguns anos que li o livro e não estou sendo precisa. Recorro à imagem porque ela dá corpo à memória de dom Paulo Evaristo Arns de uma forma mais concreta do que as palavras conseguem dar. Aquele pai em busca da filha que nunca mais veria, atravessando a porta de um templo estranho a sua história de vida e encontrando acolhida lá dentro enquanto do lado de fora ninguém queria pronunciar o nome dela em voz alta – Ana Rosa –, aquele pai, aquela cena, nos dão uma ideia concreta do que fez dom Paulo.

O pastor Jaime Wright era chamado por dom Paulo Evaristo Arns de “meu bispo auxiliar para direitos humanos”

Dom Paulo encontrou dois parceiros à altura. O rabino Henry Sobel e o pastor presbiteriano Jaime Wright comandaram com o cardeal o esforço de seis anos, ainda durante a ditadura militar, para compilar informações sobre brasileiros desaparecidos ou vítimas de tortura, que transformaram no livro Brasil Nunca Mais. Serviu como denúncia, como ferramenta para localizar os desaparecidos e como registro histórico.

O reverendo Jaime Wright, nascido em Curitiba, juntou-se a dom Paulo por causa de um drama pessoal. Seu irmão, o deputado por Santa Catarina Paulo Stuart Wright, é um dos desaparecidos. O pastor rodou o Brasil seguindo pistas falsas que nunca o levaram ao corpo do irmão. Foi graças ao seu esforço que o presidente americano Jimmy Carter – que é batista – veio ao Brasil e se encontrou com dom Paulo para receber uma lista de nomes de desaparecidos políticos. Também foi Wright quem conseguiu junto ao Conselho Mundial das Igrejas os US$ 50 mil para custear o trabalho de pesquisa que resultou no Brasil Nunca Mais. Depois de sofrer a resistência de sua igreja, acabou se dedicando inteiramente ao projeto. Trabalhava na Cúria e era chamado por dom Paulo de “meu bispo auxiliar para direitos humanos”.

Durante um período em que trabalhei em São Paulo, entrevistei Henry Sobel algumas vezes. Na época, sua atenção estava voltada para Israel. Era um crítico atento a cada movimento feito pelo governo israelense que lhe parecesse provocar confrontos e violência. É um tipo inesquecível. Foi corajoso ao se juntar a dom Paulo para realizar o culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog – que seria entendido como uma provocação às autoridades. Numa demonstração de que não acreditava na versão oficial sobre as circunstâncias da morte, Sobel não sepultou Herzog na ala dos suicidas do cemitério judaico.

Portanto, aquele culto ecumênico na Sé, na tarde de uma sexta-feira de 1975, foi um encontro de homens notáveis, cada um fiel a uma tradição religiosa, todos fiéis à boa vontade.

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