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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Quanto tempo cochilei? Quinze minutos? Dez? Acordei, mas não me mexo. Os colegas tagarelam aqui do lado. Posso ouvir as histórias sem participar da conversa. Gosto disso. O sono deixou meu corpo relaxado, quero aproveitar a sensação. “Gilvana tá desconfiada...” – é o Zé, sempre contando as aventuras de quem tem mulher e namorada. Ele diz que tem namorada. Não acredito. Acho que ele inventa a tal guria. O Zé é um cara feio e chato. Conta vantagem. A Gilvana, essa existe mesmo. Coitada. É a mulher dele.

Os caras gostam de falar quando a gente senta pra almoçar, como agora. Tagarelam sem parar. Só o Jean não respondia nada. Ele é haitiano. A gente pensava que ele não entendia português. Mas depois percebi que ele ficava mudo porque queria. Uma vez comentaram que ele era professor lá no Haiti e não tinha o que conversar com os humildes, como nós. Sei lá. De qualquer jeito, o Jean não corta mais árvores. Mudou de serviço.

Esse nosso serviço não é ruim, não. Perigoso só. Salário é pouco. O mínimo. A vantagem é que dão almoço, um marmitão. Eu como tudinho, que assim economizo, pulo o café da manhã e o jantar. Em casa, à noite, só café preto. Por isso que cochilo, porque comi muito. Tenho um tempinho para ficar aqui, na grama. Nessa rua sempre tem árvore pra cortar. Parece um matagal, mas tem muito condomínio chique. Desconfio que os bacanas ligam toda hora pra prefeitura e exigem poda de árvore. A gente tá sempre voltando aqui.

O bom de não ver tudo é que a gente imagina. Imaginar é a melhor parte

Então já conheço esse gramadinho. Rua parada. Os caras podem falar suas baixarias que ninguém escuta. Quando eles param eu já sei que é mulher que vem passando. Eles calam a boca quando ela vai chegando perto. Fingem que não estão olhando até ela passar. Aí ficam olhando a dona da cabeça até o pé. Não aguento a curiosidade e abro os olhos um pouquinho. Vejo as pernas, que é a melhor parte. Não me espicho pra enxergar melhor porque não quero dar bobeira. É bom ver e não ser visto. Cinema de pobre. As gurias na calçada são as estrelas do filme e nem sabem.

Hoje vi duas mocinhas. Devem ter percebido que estavam olhando pra elas e tropicaram. As duas. A mais gorda empurrou a mais magra. Acho que eram bonitinhas. O bom de não ver tudo é que a gente imagina. Imaginar é a melhor parte.

Eu, mortinho, aqui na grama. Barriga pra baixo. Tem silêncio, mas tem ruído. Quanto barulho tem no mundo! Um zumbidinho que escuto quando os caras silenciam. Será cigarra? Será meu ouvido que tá zunindo? Agora, barulho de motor, não sei que motor. Freada. Criancinha gritando. Mulher gritando. Passarinho! Parou...

Tem os cheiros também. Cheiro da terra. Meu nariz quase encostando na grama, mas da grama não sinto cheiro. Da minha pele, nem bom nem ruim. Eu sou eu e não me estranho. Hoje não tem gambá morto. Como tem gambá atropelado nessa cidade! Imagine um bicho muito feio e todo arrebentado. Nunca vi gambá vivo e nem quero. É que ele anda à noite e eu só podo árvore de dia. Um dia uma família inteira deles tava dormindo no galho e foi pro chão. Dizem que escaparam, os lazarentos. Lazarento é um palavrão que meu pai usava. Os gambás são muito lazarentos.

Quando a gente chegou, o sol queimava. Agora parece mormaço de praia. Acho que estou suando. Não me mexo. Vida boa, mas dura pouco.

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