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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Três senhores bateram à porta. Queriam falar com Rosy. Foram recebidos pela mãe dela, que foi chamá-la. Depois de alguns salamaleques, os três distintos cavalheiros explicaram a que se devia a honra daquela visita: queriam convidá-la para se candidatar a uma cadeira na Câmara Municipal de Curitiba. Diante da surpresa da moça, justificaram-se. Ela participava de programas de rádio e tevê, escrevia para jornal, trabalhava na prefeitura, era de boa família (que era o mesmo que dizer “de família tradicional”, daquelas que são aparentadas com todas as outras famílias tradicionais da cidade). Se queriam pintar um retrato fiel da futura candidata, deveriam ter mencionado sua boa aparência e inteligência. Viam nela potencial para angariar votos e, tranquilamente, se eleger.

Sem floreios – bem ao seu estilo –, ela esclareceu que a vida política não estava nos seus planos. Mas, como insistissem, fingiu ceder: “Então eu aceito ser candidata e, se eleita, já tenho meu primeiro projeto, que será defender o fim do salário dos vereadores. Vamos trabalhar sem remuneração”.

Cada vereador deveria se perguntar toda noite o que fez de útil para a cidade

Os três cidadãos se despediram educadamente (la noblesse oblige). Nunca mais bateram à porta, nunca mais tocaram no assunto.

Foi assim que se deu, meio século atrás, a natimorta carreira política de Rosy de Sá Cardoso.

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A Rosy é uma historiadora diletante, gosta de pesquisar e já explorou a biblioteca da Câmara Municipal de Curitiba. “Sabia que as sessões eram realizadas à noite porque os vereadores mantinham suas atividades profissionais durante o dia? ”, me disse ela. “De preferência em noite de lua cheia para aproveitar a luz.”

A figura do vereador ou camarista existe no Brasil desde o Brasil Colônia. Vem daquela época a outra designação que tiveram: “homens de bem”. Melhor seria “homens de bens”, já que para ser vereador era preciso ser dono de terras, além de católico e branco, ou seja, só a elite identificada com a monarquia portuguesa podia fazer parte das câmaras municipais. Competente fazendeiro, mas protestante ou judeu? Candidatura indeferida. Católico devoto, mas mulato? Que nem ousasse!

Os vereadores tomavam decisões importantes, que se misturavam com as ações do Executivo e do Judiciário. O rei queria que o representassem, que defendessem os interesses da Coroa. Por isso não convinha dar voz ao povo, mas sim aos que faziam parte da elite, que não queria mudar nada. Ser vereador era um privilégio. O historiador goiano Rainer Souza acredita que o longo período de convivência com essas regras enraizou nos brasileiros a crença de que só as pessoas com muita educação formal e nascidas na elite econômica teriam condições de administrar as cidades e o país, o que atrasou a democratização dos cargos eletivos.

Voltando aos vereadores, a profissionalização da função, que os transformou em legisladores remunerados e apoiados em uma grande estrutura, ocorreu ao mesmo tempo em que a função se esvaziava. Hoje eles pouco interferem na vida das cidades e o contato com a população se dá através de assistencialismo e do encaminhamento de demandas que o cidadão deveria ter totais condições de encaminhar sozinho, sem intermediários.

A democracia é o melhor regime e também o que dá mais trabalho. Exige ajustes o tempo todo. Na fase atual, para serem mulheres e homens de bem – e não apenas pessoas “de bens” –, cada vereador deveria se perguntar toda noite o que fez de útil para a cidade. Caso contrário, a irrelevância das câmaras levará à sua extinção.

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