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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

A sala está escura, estamos todos em silêncio. Esperamos. Ela, sentada ao meu lado, sussurra: “Vem cá, meu encosto”. Não era para eu ouvir, mas estou entre ela e o “encosto”, que vem chegando com pipoca e refrigerante, olhando para os lados enquanto caminha no corredor da sala de cinema. Ao ouvir seu... ah... apelido, ele se vira. O encosto bem apessoado me pede licença para passar e se dirige à moça. Inclina-se, beija-a de leve na boca e então se põe a acomodar o lanche em lugar seguro.

Sem dúvida existe uma história por trás dessa escolha bizarra de apelido. História que não nos interessa porque só deve fazer sentido para os dois pombinhos. Se é porque ele não desgruda dela como um espírito que não quer deixar este mundo, é problema ou alegria deles. Nem vale a pena saber. Fora do clima apaixonado em que dois amantes se rebatizam, toda história assim soa ridícula e sem sentido. É um microuniverso em que só cabem dois.

Nomes inventados na intimidade só podem ser empregados por alguém que é realmente muito próximo

“Meu doce Mosquito, eu te amo. Eu te amo meu superlativo Mosquito”, escreveu Nabokov para Vera, sua esposa. Em seguida, na mesma carta, ele usa os mais tradicionais “minha doce criatura”, “minha doçura”, “minha felicidade”. Nabokov inventou dezenas de apelidos para Vera. Biógrafos e estudiosos de sua obra comentam essa forma muito íntima de expressar amor que aparece na vasta correspondência escrita em russo e, às vezes, em inglês. As cartas de Nabokov para Vera foram preservadas e reunidas em um livro ainda não publicado no Brasil. Vera queimou as que escreveu, aparentemente por ser uma pessoa muito discreta e prever que, devido à fama do marido, aquelas expressões de intimidade iriam acabar se tornando públicas.

Com exceção de “minha alma”, a maioria dos apelidos inventados por Nabokov soam ridículos para nós, mas deviam soar românticos aos ouvidos de Vera. Mais exemplos: os dois gostavam de animais e era comum que ele a chamasse de Macaquinho ou Pardal. Aqui temos outra característica dos nomes inventados na intimidade: só podem ser empregados por alguém que é realmente muito próximo. Se qualquer outra pessoa se arriscasse a usá-los conosco, romperíamos a amizade e viraríamos as costas para sempre. Imagine outro homem, que não o marido, se referindo à senhora Nabokov como “Macaquinho”? O apelido se transformaria em ofensa.

Tempos atrás, a descoberta de que telefones de alguns membros da família real britânica eram monitorados por um jornal sensacionalista tornou público o apelido dado pelo príncipe William para sua então namorada, Kate. Ele a chamava de algo como “Bebezinha”. “Eu espero que você esteja bem, Bebezinha” – foi a frase registrada pela escuta ilegal. “Se o apelido soa meloso demais aos nossos ouvidos, é porque ele não deveria ter sido ouvido por nós”, escreveu uma colunista no jornal The Guardian. É um resumo perfeito.

Eu, por exemplo, não deveria ter ouvido a moça chamando seu encosto. Mas aí a culpa foi dela, que quebrou a terceira regra do universo dos apelidos íntimos ao pronunciar em público o nome que só deveria ser dito em espaço privado ou diretamente no ouvido do dito cujo.

Já que falei em Nabokov, que escreveu belíssimas cartas apaixonadas para sua amada esposa (que, por sua vez, carregava na bolsa uma pistola para proteger o marido de leitores ofendidos por suas obras literárias), traduzo aqui um trechinho do livro Letters to Vera:

“Você entrou na minha vida – não como alguém que veio fazer uma visita... mas como quem chega a um reino onde todos os rios estavam esperando para refletir sua imagem, todas as estradas esperavam pelos seus passos.”

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