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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

A fera se esconde em um canto com a presa entre os dentes. Com a aproximação de outro macho, emite um rugido grave e longo, sem abrir a boca que prende o bicho morto. Atraída por esse som entro no meu quarto e lá está ele! O gatinho amarelo, escondido entre minha cama e a cortina, encara o rival preto e branco, que o olha com curiosidade. Da boca do gato amarelo saem duas perninhas de passarinho, os pezinhos minúsculos com os quatro dedos esticadinhos. Tigrinho, o caçador, atacou mais uma vez. Sabe-se lá como, conseguiu colocar o corpo inteiro do passarinho dentro da boca. Além das perninhas, só vejo algumas penas. Meu desconsolo é tamanho que me afasto levando comigo o gato preto e branco, o Misterioso. Ou Mister, para os íntimos.

Do passarinho devorado por Tiger e trazido para o meu quarto só sobrou o coração

Não há como resgatar a vítima de Tigrinho, assim chamado por causa de sua pelagem rajada, como a de seus parentes selvagens da Ásia. Na semana passada, outra vítima teve mais sorte. Encontrei o predador cheirando a vítima. Ao chegar perto, notei que o passarinho estava vivo e levei-o para longe, de onde saiu voando. As baratas que ele caça e que às vezes abandona na garagem não têm merecido o mesmo cuidado da minha parte por razões óbvias.

Tigrinho foi trazido para casa para substituir o Mister, que havia sumido e que, marotamente, reapareceu quatro meses depois. A pessoa que nos falou dele avisou: “É um gatinho mirrado e feinho”. Era bem o que o meu filho queria já que Mister também tinha sido um gatinho mirrado e feinho. O menino gostou de vê-lo desabrochar, gostou de cuidar de uma criatura que ninguém mais queria. Só que o gatinho pulguento superou nossas mais otimistas expectativas. Transformou-se em um gato grande (Mister é nanico perto dele), de pelo macio e espírito selvagem. Quer passar o dia vigiando a vizinhança, indiferente ao alarido dos cachorros que o veem pelas janelas e varandas e se arrebentam de latir. Vigia as bocas-de-lobo de onde saem baratas, esconde-se embaixo de automóveis para localizar passarinhos e salta no ar para capturar insetos.

A revelação de sua verdadeira personalidade e envergadura provocou uma mudança de nome. Agora ele é Tiger, o caçador. Suas escapadas que às vezes resultam na morte de passarinhos me enchem de tristeza. Amo os gatos, mas reconheço que a presença deles não é inofensiva. Não são parte dessa fauna nativa que resiste na cidade. O implacável Tiger perturba a vida dos sabiás e das rolinhas. Espero que a velhice o acalme. Mas a velhice está longe de Tiger, um rapazinho cujos hormônios foram domados pela castração, mas que mantém em cada célula os instintos que fazem dos felinos grandes caçadores de espírito livre.

Do passarinho devorado por Tiger e trazido para o meu quarto só sobrou o coração. Um coraçãozinho do tamanho de uma amêndoa, um feixe brilhante de músculos lisos e vermelhos como devem ser todos os corações. Encontrei-o no chão, em frente ao guarda-roupa, estranhamente intacto. Levei-o na palma da mão até o meu minúsculo jardim e dei a ele um sepultamento digno, embaixo de uma árvore, a um palmo da superfície. Parecia suficiente para um coraçãozinho tão pequeno.

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Apelo: governo do Paraná e professores, não tirem os alunos da cabeça um minuto sequer enquanto negociam e discutem o futuro da greve. A situação desses estudantes é apavorante.

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