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 | Felipe Lima
| Foto: Felipe Lima

Ele diz: “Não dá para continuar assim. Ela está sofrendo”.

A mulher se irrita: “Você não está preocupado com o sofrimento dela. Está pensando no trabalho que ela dá”.

“Sim, é muito trabalho, mesmo” – ele fica bravo. “Somos pessoas ocupadas e agora temos mais trabalho porque ela está com incontinência. Coitada.” – ele se acalmou. “Não vale a pena viver desse jeito.”

Os filhos adolescentes acompanham a discussão a distância, fingindo lanchar na cozinha. Lisa está velhinha. Tem cataratas nos olhos. As crianças a viram trombando nas cadeiras. “Desculpe eu rir, mãe, é engraçado.” Dorme muito ou fica imóvel, com o olhar parado em um ponto qualquer. Será senilidade? Nada disso incomodava os demais moradores da casa. Mas a urina... Manchas começaram a aparecer nos sofás. Lisa é a suspeita. A Mãe não sabe mais o que fazer para reparar os estragos. Lava o sofá em um dia e no outro a mancha reaparece.

Daí a discussão entre o Pai e a Mãe, marido e mulher. Os dois amam Lisa. Mas a situação é incômoda. Talvez ela ainda viva muitos anos.

A Mãe tem um carinho especial por Lisa porque a viu dando à luz quatro filhotinhos

A longevidade dos gatos aumentou porque são bem cuidados e mantidos dentro de casa. “Se ela não está sofrendo, seria maldade sacrificá-la” – diz o pai. “E como sabemos que ela não está sofrendo?” – responde a mãe. Os dois trocam de posição na discussão, que recomeça.

A Mãe tem um carinho especial por Lisa porque a viu dando à luz quatro filhotinhos, há muitos anos. A gatinha passou a noite toda em trabalho de parto aos pés da cama do casal, lugar que escolheu, provavelmente por sentir que ali ela e os filhotes estariam protegidos. Não miou, não gemeu. A Mãe notou e tentou ajudar. Não tinha o que fazer. Acordou bem cedo pensando em limpar as marcas do parto que deviam estar no chão, no tapete. Não tinha nada. Seguindo o instinto herdado de seus antepassados selvagens que precisavam esconder os filhotes para protegê-los dos predadores, Lisa engoliu a placenta, lambeu as marcas de sangue no chão. Nas duas noites seguintes, a Mãe e o Pai acordaram assustados. Lisa levava os filhotes, um por um, até a cama, e os colocava para dormir – sabe onde? – junto aos pés deles. Aquelas criaturas minúsculas e quentes assustavam os pais, que tinham medo de esmagá-los. Lisa era uma heroína naquela casa, a fêmea que pariu sozinha e em silêncio, que amamentou seus filhotes e escolheu seus protetores. Ela confiava no Pai e na Mãe.

Agora está velhinha, não se move e parece que, quando ninguém está olhando, faz xixi no sofá.

O Pai e a Mãe param de discutir e vão para a cozinha. Lá se deparam com os olhares tristes dos filhos. “Que dureza, né, filho?” – diz o Pai.

A moça olha fixa para os adultos. Também quer ser consolada. “Tá triste, filha?” – pergunta a Mãe.

“Estou pensando que a Maninha também tá ficando velha.”

A Maninha é a cachorrinha, um pouco mais jovem que Lisa. Mas cães vivem menos que gatos.

O Pai e a Mãe se olham e pensam no próprio futuro.

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