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Veja: em algumas páginas o dicionário é trilingue |
Veja: em algumas páginas o dicionário é trilingue| Foto:

Curiosidade

A gramática que salva

Ao contrário dos Jesuítas que, apesar de defenderem os índios, eram antes de tudo políticos e chegaram a emprestá-los aos colonos para exploração de mão de obra, os padres dominicanos usaram a transcrição da língua indígena (a gramática) para realmente salvar esta população. "Os dominicanos estavam interessados em mostrar aos reis ibéricos que os índios daqui tinham alma e, por isso, não poderiam ser mortos ou escravizados como vinham sendo pelos colonos. Eles dizem: alguém que tem uma língua como esta, com toda esta complexidade e estrutura, não pode ser um animal sem alma", afirma a linguista Cristina Altman, da Universidade de São Paulo (USP).

Catequização

Com os chineses foi diferente

Conseguir entrar na China para catequizar a população foi uma atividade complicada para os padres Jesuítas. A dinastia Ming, que governava o país na época, não permitia a entrada de ocidentais, principalmente missionários. "Os Jesuítas focaram na elite chinesa porque acreditavam que, se conseguissem se congregar a eles, conquistariam todos os outros", diz o linguista José Borges Neto, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

O jesuíta italiano Matteo Ricci não só conquistou e elite como colocou as ideias católicas em pé de igualdade com as do filósofo Confúcio (551 a.C. 479 a.C.). Na China, os Jesuítas foram mais tolerantes com outras crenças do que em outros países, e usaram a ciência e tecnologia ocidentais para atrair os chineses. "Ricci chegou a fazer um mapa mundial no qual colocou a China como o centro do mundo. Foi um verdadeiro puxa-saco. Quando morreu, teve autorização para ser enterrado em Pequim", afirma Borges. Nessa época, outros estrangeiros que morriam na China eram enterrados em Macau, que pertencia a Portugal.

O que é considerado o primeiro dicionário Chinês-Português do mundo ainda é um mistério. Ele era tido como perdido até 1934, mas foi redescoberto nos arquivos da Companhia de Jesus, na Biblioteca do Vaticano, pelo jesuíta Pachoal M. D’Elia. Depois disso, chegou a ser pesquisado e republicado (em fac-símile) em 2001, o que não garantiu sua popularização. O livro atual é tão difícil de ser encontrado na íntegra quanto o original: há apenas uma parte dele na internet, com muitas páginas censuradas, no site do Google Books. A obra, tida como uma raridade, foi produzida no século 16 e contém 6 mil palavras escritas à mão, distribuídas em 189 folhas.O fato de o dicionário estar inacessível – só quem tem permissão para entrar na Biblioteca do Vaticano pode vê-lo na íntegra – não permite aos pesquisadores responder a questões simples sobre o contexto em que a obra foi escrita e os princípios linguísticos utilizados. Mais curioso ainda é pensar que o dicionário, escrito em português e mandarim, foi feito por dois italianos, Matteo Ricci e Michele Ruggieri.

A explicação histórica ajuda a sustentar as ideias de como o dicionário foi produzido. É preciso relembrar, segundo a linguista Cristina Altman, da Universidade de São Paulo (USP), que os missionários católicos (franciscanos, dominicanos, agostinianos e principalmente os jesuítas) foram responsáveis por nada menos que 672 gramáticas, dicionários e catecismos produzidos em todo o mundo durante cerca de 300 anos, entre os séculos 16 e 18. É neste período de produção – especificamente entre 1583 e 1588 – que nasce o dicionário português-chinês, na cidade de Macau (China).

"O domínio de diversas línguas era indispensável ao sucesso da empresa colonial missionária", afirma Cristina Altman. "A gramática era feita para outros padres missionários aprenderem a língua do povo a ser catequizado [principalmente os índios]. Mas o que impressiona é que elas foram feitas por homens geniais que reproduziram verdadeiras obras-primas ao descrever uma língua que não conheciam ou dominavam."

Para passar a mensagem de Deus, os missionários deveriam ser, antes de tudo, observadores e catalogadores de línguas. Acredita-se que eles tiveram contato com pelo menos 218 dialetos e línguas do território sul-americano. "Eles acumularam informação sobre a diversidade linguística americana suficiente para notar o quanto poderia haver de ‘afinidade’ e ‘divergência’ entre as línguas, seja na pronúncia ou no vocabulário", diz Cristina. Nessa época os países europeus já tinham uma língua escrita, mas em diversos países sul-americanos esse registro não existia.

Como proceder?

Para fazer esse tipo de levantamento, os padres precisavam, antes de tudo, de uma boa educação. Ricci e Ruggieri se formaram na Itália. Além das disciplinas obrigatórias de Filosofia e Teologia, o primeiro estudou Direito, Matemática e Ciências. Ruggieri se formou em Direito. Os dois entraram para a Companhia de Jesus e aprenderam o português em Portugal. Em 1578, 14 jesuítas – entre eles Ricci e Ruggieri – foram enviados em missão a Goa (Índia) e depois de um ano foram para Macau (então sob domínio de Portugal) a fim de estudar a língua e a cultura chinesa. Começaram a entender o mandarim e interpretá-lo para que os novos padres que chegassem falassem a língua local. "Especialmente Ricci percebeu que, sem um bom conhecimento da língua e da cultura chinesas, a atividade dos missionários estaria fadada ao fracasso naquele país", diz o linguista José Borges Neto, professor-sênior da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Em 1583, Ricci e Ruggieri conseguiram autorização para instalar a primeira casa da missão católica na China – deve ter sido esta a data de início da produção do dicionário Português-Chinês. "Eles provavelmente terminaram o dicionário em 1588, porque Ruggieri volta à Itália e nunca mais retorna à China", diz Borges Neto. Ele lembra que Ricci escreveu, depois, um dicionário Chinês- Português, desaparecido até hoje, e traduziu orações católicas, entre as quais o primeiro Catecismo e a obra Explicação dos Dez Manda­mentos. "Ainda tenho mais perguntas a fazer do que respostas a dar sobre o dicionário, porque ele ainda tem um acesso muito restrito", diz Borges.

O que se pode concluir, a partir do que há disponível na internet, é que o dicionário era, nas cinco primeiras folhas, trilíngue (português – chinês – italiano) e que depois virou bilíngue. O mais interessante é que a obra, além de fazer a tradução, mostra como era a pronúncia das palavras chinesas (uma coluna é uma espécie de "manual de fonética").

Cristina Altman lamenta que a produção dos jesuítas ainda tenha acesso tão restrito. "Parece que os jesuítas não fazem questão de popularizar o que há na biblioteca do Vaticano. A impressão é que eles querem manter tudo em segredo", afirma. Como as obras ficaram reduzidas ao ambiente religioso, nunca foram vendidas ou integraram bibliotecas. "Na Europa, a produção missionária foi desprezada também porque era vista, lamentavelmente, como um documento de padre para ensinar índio", comenta a linguista da USP.

O catalogador

Foi graças à ação do padre Lorenzo Hervás que todas as obras produzidas pelos missionários foram preservadas. Hervás era o bibliotecário do Vaticano quando os jesuítas foram expulsos dos diversos países onde atuaram. Eles pediram abrigo em Roma, onde deixaram tudo o que produziram. "Hervás organiza o conjunto de documentos e começa a comparar as línguas. Ele publica, então, a Grande Enciclo­pédia do Universo, primeiro em italiano e depois em espanhol", afirma Cristina Altman.

Neste trabalho, Hervás percebe que todas as gramáticas coloniais foram organizadas a partir do princípio do latim, ou seja, línguas das mais diversas origens (inclusive indígenas) foram divididas em oito partes: nome, pronome, verbo, particípio, preposição, advérbio, interjeição e conjunção. Eles usaram esse modelo para entender a língua com a qual entraram em contato. Procuraram, por exemplo, dizer o que é nome nesta língua, que ela tem um número de letras em maior ou menor quantidade que o latim e assim por diante. "É literalmente a arte de criar gramáticas", conclui Cristina.

Publicações

América Espanhola teve produção maior

A produção de gramáticas que descreviam as línguas locais foi bastante tímida no Brasil. Só duas foram feitas entre os séculos 16 e 18, uma dos padres José de Anchieta e Luís Figueira sobre o tupi (tupinambá) e do jesuíta Luis Vinvencio Mamiani a respeito do kiriri (língua da etnia kiriri). Ambas foram escritas em português e publicadas primeiramente em Portugal.

Já na América Espanhola, a produção, entre 1580 e 1640, foi bem mais numerosa. "Certamente porque havia uma política de ensino das línguas indígenas bem mais agressiva. Isso foi acontecer no Brasil só no século 20", afirma a linguista Cristina Altman, da Universidade de São Paulo (USP).

A ausência da imprensa no país foi outros um complicador. O Brasil só recebeu uma impressora a chegada da corte portuguesa, no século 19 (o México, por exemplo, já tinha uma impressora em 1539). "O esforço de Portugal também estava em outro lugar. Prestava mais atenção no Japão [do que no Brasil] porque lá havia especiarias e seda e aqui existia o pau-brasil, bem menos interessante comercialmente", explica Cristina. Há ainda o fato de as civilizações indígenas de alguns países como o Peru, por exemplo, serem muito mais organizadas e evoluídas. (PM)

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