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Arlinda Santos, Vera Peres, Dalva Alves (sentadas) e o casal Zulmira e João Afonso: órfãos da Geada Negra na vila 23 de Agosto. | Hugo Harada/Gazeta do Povo
Arlinda Santos, Vera Peres, Dalva Alves (sentadas) e o casal Zulmira e João Afonso: órfãos da Geada Negra na vila 23 de Agosto.| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo

“Meu cafezal em flor, quanta flor, meu cafezal...”. As veteranas Arlinda, 79 anos; Dalva, 69; Vera, 62; Zulmira – e seu marido João, ambos com 73 – não resistem ao encontro informal para falar sobre os 40 anos da Geada Negra. Lá pela página 2 da conversa, põem-se a cantar o sucesso do conterrâneo Luiz Carlos Paraná, sucesso na voz da dupla Cascatinha e Inhana. Esticam o “flor”. Permitem-se um “êta nóis”. Sacam seus lencinhos. Não escondem a emoção. “Sabe o que é? A gente tem saudades da roça”, resume Vera Lúcia Soares Peres, líder comunitária na Vila 23 de Agosto – pequena área habitada por 693 famílias, encravada numa divisa dos bairros Ganchinho e Umbará, zona sul de Curitiba.

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Em comum, o “coral” de cinco vozes tem a luta pela casa própria – oriundos de outras periferias, dormiram debaixo da lona preta quando o “23” começou em 1991 – e as origens nas lavouras de café do Norte Paranaense. O “Pioneiro”, o “Novo” e o “Novíssimo”, como gostam de se referir à extensão de terras que ia “de Jacarezinho a Umuarama” – algo como 2 milhões de hectares e 192 cidades. “Já imaginou tudo isso florido de branco?”, pergunta uma. “E soltava perfume”, informa outra. A música compara essa paisagem a uma noiva – e sugere que a flor bonita se transforma num fruto amargo. Foi assim, de fato.

Cidade grande

A Geada Negra – fenômeno meteorológico que devassou pelo menos 850 milhões de pés de café em 18 de julho de 1975 – deixou 300 mil agricultores sem emprego. Não era raro grupos com mais de seis filhos, padrão de natalidade na época. A maior parte desses paranaenses por adoção – os colonos tinham origem paulista, mineira, baiana e até portuguesa – migraram para estados como Mato Grosso e Rondônia, onde seus patrões possuíam terras. Há quem compare esse movimento migratório à Conquista do Oeste, nos EUA. Estima-se que da década de 1970 até hoje, a zona rural do Paraná tenha perdido 2,5 milhões de habitantes. A razão da revoada é simples: a lavoura de café exigia trabalho coletivo e braçal; a de soja, que a substitui, não.

Parte dos deserdados dos cafezais queimados pela geada fez outra escolha – a cidade grande. Parece coisa de filme. Em 17 de julho de 1975, o “Dia da Neve”, a capital se disse europeia na capa dos jornais: “Curitiba Branca de Neve”. Em meses teria seu encontro com o Brasil real. Levas de agricultores chegavam aqui – nem sempre na Rodoferroviária, mas a bordo de caminhões. Muitos nunca tinham visto fogão a gás ou panela de pressão. “A vida era outra. No campo não havia luxo. A única posse da gente era a roupa de ir na missa”, lembra Arlinda dos Santos.

O movimento migratório de “nortistas”, como foram chamados, é um pouco anterior à Geada Negra. Havia pressão institucional para que o Paraná abandonasse a monocultura, dado seus riscos. O fantasma das geadas parecia confirmar a tese. Outras intempéries fortes – duas nos anos 50, quatro nos anos 60 –, provocaram falências nas fazendas do Norte, instantâneo inchaços nas periferias da capital e o avanço das favelas. Basta lembrar que o primeiro projeto de desfavelização em Curitiba é de 1966-67, na Vila Nossa Senhora da Luz (CIC), com 2,1 mil casas populares. Os moradores do antigo Capanema e baixios do Santa Quitéria foram levados até lá mais uma vez como carga, desta vez nos caminhões do Departamento de Estradas e Rodagens (DER).

“Era do Gelo”

Nos dois decênios – 60 a 70, e 70 a 80 – a cidade cresce 68% cada vez. Mas nada que se compare ao cenário desenhado na década de 1970. Nessa verdadeira “era do gelo”, a capital passou de 600 mil a 1 milhão de habitantes, com o agravante de que o déficit de moradia se tornou visível. Onde hoje está a estufa francesa do Jardim Botânico, por exemplo, havia 700 casebres, mais de 3 mil moradores. Favas contadas: em 1976 – um ano depois da Geada Negra – a prefeitura faz um plano emergencial de moradias. “Uma coisa que estava na cabeça do administrador público era que Curitiba não poderia ter favelas e ponto. Favela era coisa de Rio de Janeiro”, lembra o arquiteto e urbanista Lóris Guesse, referência em programas habitacionais na capital.

Lóris – que fez carreira na Cohab – se refere à fama internacional alcançada pela cidade depois da primeira gestão do prefeito Jaime Lerner. Para surpresa, boa parte da história desse impasse se perdeu, um prejuízo para a memória da tragédia climática que casou Curitiba com o resto do estado. É quase impossível saber quantos dos 700 mil “novos curitibanos” daquelas duas décadas eram órfãos da Geada Negra: pelas contas seriam 200 mil em 20 anos, mas ninguém ousa assinar embaixo.

A companhia de habitação fazia fichas manuais das famílias candidatas à moradia popular. Nela aparecia a cidade de onde tinha vindo – Ivaiporã, Siqueira Campos, etc. No item “motivo”, lembra o arquiteto, era comum aparecer a frase “o campo não dá mais”; ou “acabou o café”. Essas informações foram passadas para computadores, mas os arquivos se perderam .

A época se dizia que 30% da população favelizada – mais de 4 mil famílias em 35 ocupações – era formada por curitibanos empobrecidos. É provável que os 70% restantes fossem nortistas, ainda que um número incerto de migrantes tenha resistido à favelização. Esse índice seguiu no crescente – de 7 ocupações na década de 50, passou-se para 26 nos anos 60 e 67 no final da década de 1970.

Guesse lembra que a prefeitura tinha 13 áreas para fixar os migrantes, nos mais diversos pontos. “A palavra de ordem era evitar os guetos como Vila Nossa Senhora da Luz, Santa Ifigênia ou Vila Oficinas. Já sabíamos que isolar os recém-chegados em determinados bairros seria ruim para eles e para a cidade”, conta o arquiteto, sobre a pulverização de nortistas por vários pontos da cidade.

Pesquisa inédita da jornalista Célia Raquel Gomes – que também fez carreira na Cohab – confirma Guesse. Conjuntos como Gramados (Pinheirinho, 1977), Meia Lua (Boqueirão, 1978), Jardim Paranaense e Acácia (Alto Boqueirão, 1979 e 1980), para citar alguns funcionaram como reassentamentos. A maioria fica na Zona Sul e Leste (Xaxim, Pinheirinho e Cajuru), onde havia mais terras baratas e disponíveis, além de empregos na indústria.

A questão é controversa, mas se pode dizer com segurança que as colônias cultivavam não só café, mas também organização. Havia escola primária, times de futebol, igreja e gestão financeira de parte das colheitas – 40% do café colhido ficava para os agregados. Ao se verem atirados à periferia, esses grupos teriam recorrido aos velhos tempos. Em comunidades nortistas, como a Vila Nossa Senhora da Paz – naquele tempo chamada de Inferninho – os moradores colocaram manilhas nas ruas, entre outras iniciativas que amenizaram a precariedade . Se Lerner fez de Curitiba um laboratório padrão Sorbonne, a Geada Negra fez da cidade um laboratório pós-tragédia no campo – um padrão universal. A Curitiba 1975 é um tema a procura de um autor. Quem se habilita?

* Colaborou Diego Antonelli

Os órfãos do café

Na década da "Geada Negra" (1970) Curitiba passou de 600 mil para 1 milhão de habitantes. Parte desse crescimento foi impulsionada pelos "novos curitibanos", grupo formado por "nortistas" que deixaram o campo. Famílias se pulverizaram nas periferias, mas algumas áreas ficaram mais marcadas pela presença dos recém-chegados.

Fontes: Redação. Infografia: Gazeta do Povo.
  • A aposentada Maria Pereira Galvão, 78 anos, deixou Wenceslau Brás, no Norte Pioneiro, em 1963. Um ciclo de chuvas acabou com a lavoura de feijão, que ela cultivava em parceria com o marido. Fixaram-se no Bairro Alto e aqui criaram as três filhas. Mas as raízes continuaram no Norte, precisamente em Siqueira Campos, onde a família de Maria residia. Ela foi criada numa fazenda de café – ligação tão forte que até hoje mantém um pé da planta em seu quintal.
  • A família das irmãs portuguesas Maria Ivete da Silva, 63 anos, e Olinda Matilde Torres, 76, veio de Portugal para o Brasil em 1952. Fixaram-se numa colônia de agricultores na Fazenda Curitiba, de propriedade da empresa de extração de erva-mate Leão Júnior, na cidade de Jacarezinho, Norte Pioneiro. O clã lusitano permaneceu ali até 1957. Com dinheiro da “porcentagem” – que garantia ganhos para os colonos em cima do café colhido” – foram para Umuarama, mais ao Norte. Não tiveram dúvidas sobre o que cultivar: café. Tinham aprendido tudo sobre o assunto.
  • “Pai, você é um herói...”, costumam dizer os três filhos do baiano Sebastião Aparecido Batista de Oliveira, 59 anos, morador da Vila Mariana – um dos loteamentos que formam o bairro do Xaxim, na Zona Sul de Curitiba. Quando se ouve o que ele conta, vê-se que não se trata de exagero. Sebastião – dono do Mercado Oriente, um dos mais populares da região – nasceu em Bom Jesus da Lapa, na Bahia. Tinha 17 anos quando a família, de oito irmãos, se mudou para São Jorge do Patrocínio, no chamado Norte Novíssimo. Objetivo: fazer a vida na lavoura de café.
  • O dia 18 de julho de 1975 é tão vivo na memória de Arlinda Messias dos Santos (primeira à esquerda), 79 anos, que ela poderia descrevê-lo minuto a minuto. Ela vivia em Itambé, uma comarca próxima a Maringá, no Norte Novo, quando duto se deu. “Na nossa cabeça, o futuro era o café. E o café se foi”, diz a mulher articulada, mãe de 11 filhos, 8 criados.
  • Quarenta anos depois da Geada Negra, o negócio da vida do funcionário público aposentado João Aires Rodrigues, 66, continua sendo o café. Não literalmente. Mesmo longe da agricultura desde 1976 – logo depois da derrocada da cultura cafeeira – João permaneceu um apaixonado pelo assunto. É capaz de explicar cada passo do plantio, de identificar cada tipo de planta. “A vida na roça era boa, sabia”, diz o morador do bairro do Xaxim.
  • A zeladora aposentada Maria Alves Sampaio, 77 anos, é mineira de Capelinha das Graças. Mudou-se para o Paraná em 1972 – precisamente para Assis Chateaubriand. Ela, marido e filhos foram para as roças, mas já não encontraram o café, cujo auge se deu uma década antes. Plantou e colheu feijão e soja. Lembra bem da Geada Negra de 1975, do fim de seus sonhos, e do dia que viu um caminhão carregando seus vizinhos. Perguntou como fazia para vir junto. “Não tinha mais trabalho para a gente por lá.”
  • “A gente era o pai e a mãe, mais oito filhos”, inicia o mecânico aposentado Antônio Pereira da Silva, 61 anos, ao falar dos tempos em que viveu na Fazenda Vera Cruz, em Tomazina, no Norte Pioneiro. É capaz de descrever cada detalhe do local e cada procedimento do plantio. Conta que o pai calculava com perfeição a distância entre os pés de café. E que ele, Antônio, sozinho, dava conta de cuidar de 8 mil pés. Ao todo, a família Silva administrava algo perto de 15 mil pés de café. “No dia da Geada Negra, bateu o desespero... Acabou tudo. Hoje só tem invernada, só gado. Me bate uma tristeza.

Órfãos da Geada Negra dizem que voltariam para as lavouras

Sim, os agricultores choraram em 18 de julho de 1975. E não só eles. O então governador do estado e cafeicultor Jayme Canet Júnior também chorou – conforme declarou no documentário Geada Negra (2008), dirigido pelo jornalista Adriano Justino. A visão equivalia não só à de ver a própria casa queimada, com tudo dentro, mas o de ver comunidades inteiras sem o seu ganha-pão, restando como alternativa procurar outro lugar para viver.

O café era sobretudo uma cultura coletiva, dada em torno de colônias. Os moradores e seus filhos se dividiam na lida de 8 mil a 20 mil pés. Muitos compraram suas próprias terras graças ao sistema de “percentagem” dada pelos fazendeiros. Como o plantio exige cuidado contínuo, braçal, observação – um trabalho intenso sempre debaixo do fantasma dos ventos e das baixas temperaturas – o afeto tendi a ser redobrado. Explica a paixão que o assunto desperta.

Havia laços entre esses moradores e seus patrões – um modelo paternalista, mas que parecia ainda mais amigável e simpático à medida que essas famílias chegavam na cidade – onde encontraram a sub habitação, o subemprego, a exposição à violência e o anonimato. Não causa espanto que “os tempos da lavoura” tenham se tornado um mito entre os prováveis 200 mil moradores de Curitiba e região com alguma ligação com o ciclo do café.

A reportagem da Gazeta do Povo circulou por vilas de sete bairros que receberam ex-agricultores dos cafezais (Santa Quitéria, CIC, Xaxim, Sítio Cercado, Bairro Alto, Prado Velho e Ganchinho) e recolheu depoimentos de 15 órfãos da Geada Negra (material disponível em www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/geada).

Com exceção de um, todos voltam anualmente às regiões onde viveram. Embora acima dos 60 anos, todos dizem que voltariam para uma lavoura de café, se pudessem. Lamentam ter perdido de vista muitas famílias com quem dividiam as colônias. Descrevem com precisão todo o processo de plantio e colheita – além de se emocionarem ao falar das floradas de setembro. O verbo “derriçar” – usado para o ator de arrancar os grãos com as mãos – é repetido à exaustão, a cada nova descrição detalhada sobre a feitura das covas e sua cobertura com pedaços de madeira. “O café era garantido”, repetem, sobre uma lida que conhecem a seu modo. “O Paraná deveria ter insistido”, repetem os populares. (JCF)

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