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 | Alexandre Mazzo/  Gazeta do Povo
| Foto: Alexandre Mazzo/ Gazeta do Povo

Em Tibagi, nos Campos Gerais, viveu uma lendária mulher chamada Idalina Fernandes. Ela animava bailes, era parteira e ensinava as crianças. Deu origem a uma linhagem de professores – a filha Sílvia, o neto Lauro e uns tantos bisnetos. Um dos seus – Rita Esmanhoto – escolheu fugir à regra e optou pela Medicina. Mas logo entendeu que se parecia mais à parenta do que podia imaginar.

Slideshow mostra os bastidores da entrevista

Assista ao vídeo com a médica Rita Esmanhoto

Dá aulas, sim – na Universidade Federal do Paraná. Não faz partos nem anima bailes, até onde se sabe. Mas cuida de pessoas vitimadas por uma enfermidade cujo estigma supera o da tuberculose – a aids. E o faz de forma notável, abraçando as políticas de saúde pública e enfrentando a obscuridade que ainda paira sobre o assunto.

O preconceito, aliás, não lhe é um corpo estranho. Na década de 70, Rita deu de ombros à opinião alheia e se casou com um negro, o médico Nizan Pereira, secretário de Assuntos Estratégicos no último governo Requião. Sentiu na pele – meio italiana, meio lusa, meio índia – o sofrimento causado pela discriminação racial.

Pois lhe valeu. A experiência fez com que se convertesse em uma importante ativista dos direitos dos afrodescendentes. As práticas afirmativas, diz, com um dedo na polêmica, são a maior realização da UFPR em 100 anos de história.

Em sua casa na Boa Vista, a discreta Rita Esmanhoto, dona de uma beleza de esfinge, falou das razões de seu afeto. A conversa não deixa de ser um tributo à Idalina – inspiração dessa sanitarista que fez da realidade bruta um consultório.

Poucos médicos escolhem a saúde pública. Por que com você foi diferente?

Achei muito solitário ficar no consultório, esperando que aparecesse um doente. Na China antiga, os mandarins só pagavam os médicos se estivessem sãos. Quando os mandarins perdiam a saúde, não pagavam mais. Eu achava estranho cobrar de quem estava no pior momento da vida. Não deu muito certo. Como eu também atendia em um centro médico, via ali uma realidade completamente diferente. Foi quando percebi que o consultório era muito pequeno se comparado aos problemas da sociedade.

Quem a influenciou?

Meus pais estimulavam a liberdade intelectual. Seis de seus sete filhos se envolveram com política. E quase todos dedicaram a vida à educação. A minha avó era a dona Idalina Fernandes, de Tibagi – sanfoneira e parteira da cidade. Também ensinava. Meu avô construiu para ela uma escola, grudada à casa onde moravam. Para dar aula, bastava abrir a porta. Graças a isso meu pai [o advogado Lauro Esmanhoto] foi para a escola antes mesmo de nascer. Quando cresceu, tornou-se professor emérito da universidade. Tem escola batizada com o nome dele e tudo.

Acabou que você também se tornou professora...

A gente fica meio sem opção, assim como o príncipe da Inglaterra. [risos]

Quando decidiu trabalhar com os pacientes de aids?

No início dos anos 90 fui trabalhar no Ambulatório de DSTs/Aids do Hospital das Clínicas. Ninguém queria atender lá. Havia muito medo e preconceito. A aids é uma doença extraordinária do ponto de vista social. Quase não se deu importância quando aconteceram os primeiros casos nos Estados Unidos, afinal, falava-se, "era uma doença só de gays". E que enfim ia se "fazer justiça". Mas não eram os leigos que diziam isso. Em livros da época, a aids era chamada de peste gay pela própria comunidade científica, que prestou o maior desserviço ao carregar de preconceito uma questão que era de toda a humanidade.

Você fez parte de um pequeno grupo de médicos que não pensava assim...

Quando eu trabalhava na Prefeitura de Curitiba, propus que elaborássemos um manual sobre a doença. Todos acharam um absurdo, um desperdício de dinheiro. Também sugeri que editássemos um livro sobre aids. Me disseram que não teria saída. A história mostrou uma realidade diferente. A doença nos obrigou a pensar. Mos­­trou aquilo que a sociedade queria jogar para debaixo do tapete. Revelou a homos­­se­­­xua­­lidade e o uso de drogas. E mostra agora que os idosos também fa­­­­zem sexo e que podem se contaminar, assim como as crianças e adolescentes.

Muito cedo você alertou que as mulheres eram vulneráveis...

Infelizmente, até hoje tem gente que pensa que mulher casada não pega aids. Mas a maioria das mu­­­­lheres que eu atendia no ambulatório era casada há mais de 20, 30 anos. O número de casos entre homossexuais jovens também tem aumentado. Esta nova geração não viu a cara feia da doença. Parece não ter mais medo. Pensa que tudo se resolve tomando o coquetel.

Arrisca-se a fazer uma previsão sobre o futuro da doença?

O HIV é um vírus extremamente mutante e está distante a possibilidade de uma vacina. O coquetel é bastante eficaz, mas não é acessível a todo mundo. As enormes populações da África, por exemplo, não têm acesso a esse tratamento. Aliás, a aids só surgiu e se espalhou pelo mundo porque estávamos de costas para a África. Mas os vírus viajam de avião, de navio... Não podemos isolá-lo. E a humanidade não caminha de forma igual... Mesmo em Curitiba tem gente vivendo como na época da Revolução Industrial, sem condições de saúde, sem direitos, sendo insultado. Por essas, a dinâmica da aids ainda permanecerá por muito tempo.

Pode contar histórias que lhe marcaram...

Testemunhei coisas horríveis, como o caso de um senhor que, quando chegou em casa, encontrou um boneco de pano – igual a esses de malhação de Judas – pendurado no poste com o nome dele. Seus vizinhos tinham descoberto que ele estava contaminado com o vírus da aids. Uma senhora soube que podia estar contaminada depois que perdeu o marido. Vivia numa cidade pequena. Quando chegou ao trabalho, encontrou sua sala vazia, sem nenhum móvel. Mesmo sem a confirmação da doença, recebeu uma licença de dois anos. Esta mesma mulher procurou um médico que lhe propôs que arrancasse todas as unhas dos pés para evitar que tivesse micose. Ela arrancou uma unha, mas a dor foi tanta que desistiu. Também atendi um casal contaminado com o HIV que, por medo da reação dos outros, ficou fechado em casa por mais de um ano.

Em 1986, você ajudou a criar a Secretaria Municipal de Saúde. Em 2005, o grupo multidisciplinar de atendimento a doentes de aids do Hospital de Clínicas. Qual o saldo dessas experiências?

A experiência da secretaria foi tão interessante que rendeu um livro (A Saúde das Cidades). Na época existiam apenas dez centros de saúde em Curitiba. Deixamos a secretaria com mais de 60 unidades. O objetivo não era apenas construir os edifícios e equipá-los, mas atender a população de forma diferenciada. Foi um trabalho pioneiro. Nos anos 2000, quando a universidade começava a implantar as políticas afirmativas, o Minis­­­tério da Saúde propôs que os alunos cotistas raciais recebessem uma bolsa de estudos para trabalhar com temas relacionados com prevenção de doenças, racismo, direitos humanos. Fui chamada para participar, junto com o Pe­­­­dro Bodê e outros professores. A­­­­com­­­panhei mais de 50 bolsistas...

Por que decidiu levantar a bandeira das políticas afirmativas?

Acho que ter adotado as políticas afirmativas para afrodescendentes e alunos de escolas públicas foi a ação mais importante da UFPR em seus 100 anos de existência. Nossa universidade não refletia o que a gente via na sociedade. Era estatal, não era pública. Público é quando todos os segmentos da sociedade estão representados. Hoje podemos chamar a UFPR de pública porque está aberta também para indígenas, negros e pobres, grupos sociais que sempre foram perversamente excluídos. Graças às políticas afirmativas começamos a levantar várias questões relacionadas à desigualdade, como por exemplo: por que os homens negros vivem 20 anos a menos do que os homens brancos? Por que uma mulher negra recebe menos analgesia no parto?

Como foi o seu primeiro encontro com o Nizan Pereira?

Lembro ainda hoje da primeira vez em que vi o Nizan. [risos] Ele era residente no Hospital de Clínicas e eu sextoanista. Eu estava saindo da Patologia e a porta estava fechada. Ele se aproximou e abriu para mim, pois sempre foi muito educado. Depois disso, nunca mais nos vimos – ele foi terminar a sua residência em São Paulo e eu continuei aqui. Nos reencontramos tempos depois, por meio de amigos em comum. Um dia, ele bateu na minha porta e me convidou para sair. Foi simples assim.

Como foi para uma descendente de italianos se casar com um negro?

Nunca me incomodei com a opinião dos outros. Nós dois tínhamos uma identidade cultural, afetiva e de classe. A minha mãe não queria que eu casasse, mas não queria que eu casasse com ninguém. [risos] As mães são assim. Já a sociedade... Vi muitas vezes o Nizan ser discriminado. Houve casos de o segurança nos seguir quando entramos em um shopping. De garçons não servirem a nossa mesa ou demorarem muito mais para nos atender do que às pessoas que chegavam depois. É o preconceito sutil. Esse tipo de reação acontece com todos os negros no país. Não seria diferente com o Nizan.

Folga para uma curiosidade: qual o segredo de beleza de Rita Esmanhoto?

Acho que é o sangue de índio – deixa a pele lisa. [risos] Sou descendente não só de italianos, mas de portugueses e de índios. Na verdade, sempre me achei mais velha do que sou. Quando era mais nova, nunca me dei bem com os jovens da minha idade. Se com 17 anos eu já era velha, imagine agora, aos 59 anos.

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