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Didi, suas pipocas e um futuro livro – O pensamento de um Homem sem Estudo | Marcelo Elias / Gazeta do Povo
Didi, suas pipocas e um futuro livro – O pensamento de um Homem sem Estudo| Foto: Marcelo Elias / Gazeta do Povo

Ele tem 64 anos – 33 anos deles passados dentro de uma instituição de ensino, o antigo Cefet (UTFPR). Nesse tempo, recebeu todas as honrarias dedicadas aos mestres: foi homenageado 31 vezes e patrono em três colações de grau. O que mais se ouve nessa que é das mais severas instituições de ensino do Paraná é "E aí, Didi?" Ele vai bem. Pipocas não dão muito, mas sempre vai existir o jazz.

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Em um cubículo de 10 m2, ele construiu seu império. A carteira de identidade teima em registrar Edivaldo Batista Nogueira. Mas é só perguntar "por onde anda o Didi?" para que meio mundo aponte o dedo para aquele pequeno espaço incrustado em um cantinho do pátio principal da Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR). A montanha de pipocas fresquinhas, que esconde o rosto negro, cansado e sereno do baiano de 64 anos, não foi capaz, no entanto, de interromper as duas maiores missões deste senhor que sorri com frequência assustadora: fazer amigos e colecionar discos.

O pipoqueiro pop nunca pensou em ser homenageado 31 vezes – são quadros, menções e dedicatórias. Nem em ser patrono de alunos por três.

Tampouco em ter 905 afilhados, "contando os da igreja, os de cartório e alunos". Ele saiu fugido do interior da Bahia na década de 1950, porque sua família acreditava na "vida melhor no Sul". Di­­nheiro, não fez. Mas Didi felizmente trouxe na parca bagagem suas memórias musicais. O pai arranhava algo na gaita; os bailes eram eventos imperdíveis. E em­­po­­ei­­rados. Começava ali sua paixão pela música, sentimento que se materializa na coleção de 8 mil LPs e 2 mil CDs. Todos protegidos por capas de plásticos e separados, artista por artista, com nozinhos de barbante branco.

Didi é um ímã que atrai gente. Andar ao seu lado pelo pátio do antigo Cefet, lugar onde trabalha há 33 anos, é um desafio. "E aí, Didi?", pergunta um senhor engravatado. Alguns exigem um abraço, como fez o dentista da instituição ao dar três tapinhas nas costas já arcadas do pipoqueiro. "Oi, seu Didi". Essa parece ser a frase que ecoa por ali.

Depois de tentar a vida em Nossa Senhora das Graças, pequeno município no Norte do Paraná, e de ajudar na sapataria do pai em Umuarama, não por acaso a "Capital da Ami­­za­­de", Curitiba o recebeu em 1970. "Tava difícil", lembra Didi. Foi a primeira vez durante a conversa que o sorriso perpétuo desandou. Mas tinha de continuar.

No mesmo ano instalou seu carrinho de pipoca, seu pequeno mundo, na Rua Desembargador Westphalen, esquina com a Emi­­lia­­no Perneta. Foram sete anos na­­quela região. Didi viveu por 24 me­­ses em uma pensão no Centro da cidade. Um dia era herói: separou mãe e filho que se atracaram violentamente em um dos quartos. Noutro, Don Juan: conheceu Edi, sua mulher desde 1974. Edi é um "loirão de cabelo esparramado". O casal tem quatro filhos e cinco ne­tos. Didi fala com orgulho de todos eles.

Durante esse tempo trabalhava também em estádios de futebol. Pronto. Bastaram alguns dias para que Evangelino Neves, ex-presidente do Coritiba, que morreu em 2008, se tornasse seu "irmão branco". Didi é atleticano, entretanto, mas está em todas: também foi jogador da categoria master do Paraná Clube. Ganhou alguns troféus, que figuram ao lado dos discos.

Quando não estava trabalhando ou fazendo amigos, naquela época o baiano circulava pelo Centro. O futuro colecionador de discos passava por diversas lojas que vendiam os últimos lançamentos em vinil.

A maioria delas não existe mais. Didi comprou seu primeiro álbum em 1962: um compacto dos Beatles. A coleção hoje preenche um grande cômodo de sua casa, que fica em uma ruazinha de Colombo.

Para armazenar os vinis, Didi construiu uma prateleira de madeira. São dez fileiras repletas, e somam-se a ela duas estantes igualmente forradas. Há que se fazer contorcionismo para passar de um lado para o outro do cômodo, devido à imponência do móvel que guarda "tudo" o que seu Didi tem na vida. No canto direito da salinha, há uma janela aberta para arejar o ambiente e não mofar os discos. Ao lado esquerdo, uma janela fechada para evitar olhares curiosos dos vizinhos. "A música me trouxe muita história e muita amizade", diz o pipoqueiro melômano, em frente a um quadro de John Lennon.

Nas prateleiras, um ecletismo interessante. Elvis Presley, The Beatles, The Jordans, Ed Grant, Jimi Hendrix, Raul Seixas ("gênio"), Bob Marley e um dos preferidos de Didi, o francês Michel Polnareff. Álbuns de artistas franceses e italianos, aliás, têm grande destaque na coleção. Só Robert Plant é que não tem muita vez ali. "Isso é Led Zeppelin, nem esquente", sussurra Didi ao fotógrafo, depois que ele esbarra em um disco da banda inglesa.

Hoje a coleção anda vagarosa. O dinheiro que arrecada com a pipoca – o pacote custa R$ 1,50, mas há produtos industrializados que vende a R$ 0,60, R$ 0,70, R$ 1 e R$1,20 – não é suficiente para o luxo de comprar discos novos. E a energia para fuçar em sebos se esvai a cada pacote servido. "Estou cansado. Penso no meu ranchinho na praia. Ganhei diabetes dia desses. Tudo tem fim." Didi vende cerca de 50 pacotes de pipoca por dia.

O pipoqueiro mais conhecido de Curitiba acorda todos os dias às 6h30. Toma o ônibus até seu local de trabalho, faz pipoca até 10 horas, quando há o primeiro intervalo. Vende. Conversa. Almoça em um restaurante na Marechal Floriano. Conversa. Volta para o trabalho. Chacoalha a panela até 15h30, quando há outro intervalo. Vende. Conversa.

A rotina de 33 anos – "durmo ali, só falta a cama", diz – fez dele praticamente um membro da instituição. Se em sua casa há fotos em que aparece ao lado de conhecidos políticos do Paraná, na UTFPR ele é rei.

"Conheci o Didi quando era aluno do antigo Cefet. Eu tinha 15 anos", diz Carlos Eduardo Cantarelli, atual reitor da instituição. "O Didi não é o pipoqueiro. Ele é o conselheiro de todos." Há alunos que se desligam da universidade, mas não de Didi. Alguns voltam para revê-lo. E acabam saindo com um saco de pipoca nas mãos. Outros dos mais de mil alunos começam a descobrir isso agora.

"As conversas com ele são muito boas. O Didi fala sobre a vida", conta o estudante Cassiano Gol­­fetto, 17 anos. "Ele consegue conquistar as pessoas", resume Luis Matiello, de 18.

Entre 2001 e 2002, a universidade, ainda com o nome de Cefet, enfrentou sua maior greve. Foram 108 dias sem aulas. Sem intervalos. Sem conversas. Sem pipoca e sem o faz-me rir "Alguns professores deixavam dinheiro na minha mesa, perguntando como iria fa­­zer para manter a família."

Essa é outra das histórias que estão no livro que Didi está escrevendo, O pensamento de um homem sem estudo. Mas a maioria delas, garante o pipoqueiro escritor, têm final feliz. "Só me arrependo de duas coisas na vida. De não estudar, e disso eu não fui culpado, e de não ter servido o Exército. Isso meu livro também vai contar. Meus garranchos estão prontos."

Didi passou mais da metade da sua vida dentro de uma instituição de ensino. Mesmo assim, pergunta: "não é impressionante o que conseguiu um homem que só tem o segundo ano do primário?"

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