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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Frei Pedro Brondani

O frade capuchinho Pedro Brondani comemora em 2015 os dez anos da Pastoral da Aids, projeto que iniciou quando atuava na Vila Nossa Senhora da Luz, em Curitiba. A ideia foi acolhida pela arquidiocese, espalhou-se pelo país e pauta o próprio Ministério da Saúde. As ações de frei Pedrinho, como costumam chamá-lo – pela altura e pelo afeto instantâneo que desperta – incluem o conforto espiritual aos contaminados, a militância junto a governos, mas em especial a convivência fraterna com os soropositivos. O religioso faz visitas semanais ao Hospital Oswaldo Cruz; assessora o grupo de adesão do Hospital de Clínicas – iniciativa da enfermeira Maria Alba Oliveira e do assistente social Silas Moreira –; mas principalmente está à disposição. Não raro, abre as portas dos conventos capuchinhos para confraternizações com os que considera os últimos entre os marginalizados. Nesses encontros, viúvas, idosos, jovens, transexuais e travestis, voluntários formam o que ele chama de "sua família". "O vírus não mata. O que mata é a indiferença", repete em defesa dos seus.

  • Frei Pedro Brondani mora desde janeiro, no convento ao lado da Paróquia Nossa Senhora das Mercês. Divide a casa com cerca de 20 confrades[|**|]
  • O religioso – fundador da Pastoral da Aids, soma 30 anos de vida consagrada. Trabalhou em comunidades inseridas em zonas de risco, nas cidades de Ibiporã e Foz do Iguaçu
  • Um dos trabalhos pioneiros de Pedro Brondani foi o trailer, no qual circulou por oito dioceses paranaenses, no final dos anos 2000. Ao chegar numa cidade, ia a escolas, igrejas e praças, falar sobre a tolerância e sobre a prevenção. Projeto foi adotado pelo Ministério da Saúde
  • Soropositivos, não importa o gênero ou orientação sexual, são acolhidos por frei Pedro Brondani nas comunidades em que já morou.
  • O projeto de vida de Pedro Brondani é se mudar para a
  • A rotina de frei Pedro Brondani inclui visitas semanais ao Hospital Oswaldo Cruz, no Alto da XV, onde conversa com soropositivos em estado agudo de infecções. Também presa assessoria ao Grupo de Adesão do Hospital de Clínicas
  • Frei Pedro Brondani é homem cordato, de fácil amizade e dado a gestos simples. Sua terapia dos 12 abraços, para que soropositivos rompessem o isolamento afetivo, é uma dessas atitudes
  • No Convento das Mercês, Brondani cuida da horta – uma de suas habilidades. Gosta de andar a pé – é assim que chega ao Hospital Oswaldo Cruz e ao HC, semanalmente. Informa que torce para o Paraná Clube.

Na década de 1980, até os crentes blasfemavam ao saber notícias da Etiópia. Dizia-se que Deus tinha se esquecido daquele pedaço da África. Não bastassem os estragos causados pelos 44 anos de tirania do imperador Hailé Selassié, sobreveio no país a guerrilha, a seca, a fome em massa e mais de um milhão de mortos. As fotos da população esquálida rodavam o Globo. Não se via nada tão desolador desde o Holocausto.

VÍDEO: A outra face de Frei Pedro

SLIDESHOW: Veja o ensaio fotográfico de Jonathan Campos

O frade capuchinho Pedro Brondani, 51 anos, bem se lembra. À época, era um adolescente da classe média da pacata Ponta Grossa, nos Campos Gerais. Um bom rapaz. De família devota, não faltava à missa – e causava impressão com suas roupas de domingo, as camisas bem passadas e os sapatos bico fino. Habitava um mundo perfeito. Ou quase.

As misérias não lhe eram de todo estranhas. Via-se bem perto delas quando chegava sua vez de levar um prato-feito para os mendigos que batiam palmas no portão de sua casa, no bairro Ronda, perto da rodoviária. Atender a quem pedisse comida fazia parte das regras ditadas por seu José e dona Idovina aos seis filhos. Mesmo não sendo um "alienado", saiu desconcertado da reunião do grupo de jovens em que frei Pio, o vigário, mostrou uma reportagem sobre o flagelo etíope. "Aquela leitura inquietou minha mocidade", resume.

Foi quando Pedro se sentiu "chamado". Na ocasião, havia lido umas linhas sobre Francisco de Assis. Simpatizava com os capuchinhos. Curtia vê-los todos de marrom e dedões de fora, puxando cortejos nas animadas procissões de Corpus Christi. Escolha feita. Em pouco tempo, passou a fazer parte da comunidade franciscana do bairro Uvaranas. Aos 21 anos, em 1984, entrou para a ordem. Trouxe consigo as camisas, os sapatos e o desejo de ajudar a Etiópia.

* * *

Três décadas depois, frei Pedro Brondani ainda não conseguiu carimbar seu passaporte para a África. "A África é aqui", costumam consolá-lo seus superiores, a cada adiamento. Ele concorda, com conhecimento de causa. De seu ingresso na ordem dos frades capuchinhos até hoje, viu mais tragédias do que podia supor nos tempos em que atendia os pobres no portão. E depois de vê-las, mergulha de cabeça.

Quando trabalhou com os meninos em situação de rua, dormiu no sereno e revirou latões de lixo, para entendê-los. Colocar-se no lugar dos outros é sua medida. Repetiu a mesma dose ao atuar junto aos soropositivos, missão mais conhecida em sua lista de serviços prestados. Dessa experiência, surgiu em 2005 a Pastoral da Aids, projeto ousado até o osso. A aids é a Etiópia de Pedrinho.

O capuchinho teve de ler muito relatório da Organização Mundial da Saúde para fazer a coisa certa. Não só. Precisou presença de espírito para driblar o preconceito – que acabou recaindo também sobre ele. O frade lida com contaminados – o que inclui qualquer pessoa. Mas os olhos míopes dizem vê-lo de braço dado apenas com prostitutas, homossexuais, travestis e transexuais, a quem, nas entrelinhas, culpam pela epidemia. "Já ouviu falar da moral de cueca?", descontrai.

Muitos se horrorizam ao encontrá-lo de conversa não com um paroquiano, mas com uma trans que passava pela rua. E se espantam mais ainda quando uma travesti o visita no convento, em busca de um ombro amigo. Não faz cerimônia – convida-as à mesa, como faria com um casal que dá curso de Batismo. Não faltam passagens curiosas.

Em 2007, frei Pedrinho foi com uma leiga idosa a um encontro de ONGs. Sem que soubesse, no mesmo local havia um colóquio de militantes trans – para o qual chegaram "montadas". Em minutos, aquele estranho no ninho, de hábito puído, se confundia às ruidosas gurias de salto plataforma. Não se sentiu à vontade, mas lembrou que tinha preparado uma fala sobre "O bom samaritano". Foi o que bastou para decidir usar a régua de sempre. Mergulhou. "Tive de me desconstruir, saber da dor delas. Isso tem nome – misericórdia", comenta recorrendo à sua infalível moral prática.

Virou rotina. Em 1.º de dezembro – Dia Mundial de Luta Contra a Aids –, Pedrinho sai de capuchinho pela cidade, acompanhando a ação das ONGs. "Não consigo entender o silêncio dos meios de comunicação. Fala-se da HIV no carnaval e no Dia Mundial, como se o vírus tirasse férias os demais 363 dias do ano". Não distribui preservativos, pois não é essa a tarefa da pastoral. Distribui informação.

O encanto e o frisson causados por sua presença nem por isso são menores. Nessas horas em que está ao sabor das pedras, usa de graça, inclusive com os companheiros de claustro. "Os frades mais velhos estranham, é natural. Os outros entendem. Costumo dizer que estão ficando mais católicos" – e dá risada.

Certa vez, um parente confidenciou o mal estar que sentia diante da turma, digamos, exótica, com quem ele lidava. Por quê? A resposta foi simples: "Essas pessoas são a minha família..." Com mansidão, pediu para que da mesma maneira com que acolheu os sobrinhos, também eles acolhessem os filhos que a vida lhe tinha confiado. A treva se dissipou.

Em outra ocasião, um rapaz o abraçou na frente de ninguém menos que José Brondani – o pai, caminhoneiro, gaúcho, formado na castiça tradição dos Pampas. "Quero que o senhor saiba que o frei Pedrinho é o amor da minha vida", disparou . O patriarca franziu o cenho – mas a essa altura já sabia de que amor o visitante estava falando. Ele e a mulher chegaram a embarcar num trailer no qual o filho idealista cruzou o Paraná, em meados dos anos 2000, visitando dezenas de cidades, onde falou sobre prevenção e tolerância. Viraram entusiastas da causa.

O velório

Pedro Brondani costuma dizer que não escolheu a aids – a aids o escolheu. Essa história tem local e data. Foi no ano de 1986, em Ibiporã, no Norte do Paraná. Ele morava numa "fraternidade inserida", pequeno convento em área de conflito social – quando lhe pediram para "encomendar um corpo". Tinha 23 anos e recém-professado seus votos perpétuos, cerimônia em que o religioso se consagra a Deus e se compromete em definitivo ser casto, pobre e obediente, como Jesus. Estava de lua-de-mel. Catou a água benta e se mandou às carreiras.

Para sua surpresa, encontrou um soberbo caixão lacrado – desses de filme americano – e um velório pouco concorrido. Estavam lá apenas os pais e os irmãos do falecido, um jovem rico que morrera nos EUA, em decorrência das infecções impertinentes. Nem amigos, nem parentes, nem vizinhos vieram se despedir. Naquele dia, viu a cara da aids, até então, uma abstração.

[Três anos antes do velório em Ibiporã, Pedro – ainda noviço – foi designado para servir no Hospital Dermatológico São Roque, em Piraquara, para pacientes de hanseníase. No passado, um leprosário. Não queria ir. Chegou a se atirar no chão da capela, dando uma dura em Deus. "Eu preferia o asilo", ri. No hospital, pânico – não comia nada, tinha pavor de deitar numa cama. Até que entrou numa ala – e lá encontrou Lázara, a Lazinha, sem o nariz, sem pés e mãos, cega. Mas ela o percebeu. "Está com medo do quê?" Disse que seguisse pelo corredor. Que acharia um jardim e uma fonte. Bebeu água. Logo soube que a fonte fora cavada com o toco das mãos dos primeiros internos. A angústia acabou. "Lazinha era o Amado", deduziu Pedrinho, que depois disso se livrou das camisas de bom corte e dos sapatos. Adotou a barba longa. E se tornou quem é.]

De Ibiporã, Pedro ganhou transferência para Foz do Iguaçu. A cidade é um capítulo à parte. O frei não esconde a empolgação ao falar das seis comunidades que ajudou a criar, para acolher dependentes químicos e soropositivos. Presenciou lances dramáticos – como a da prostituta que lhe perguntou se havia alguma chance de ser recebida no céu. A mulher morreu ouvindo o capuchinho lhe falar num Deus amoroso. "Na casa do pai tem muitas moradas", costuma repetir nessas ocasiões, sem afetação.

Pedrinho não é clerical, é coloquial – uma de suas qualidades. A outra é a forma incisiva com que defende o choro. Não lhe parece pieguice, mas um santo remédio para abrir as portas da compaixão. "Acho que tem de chorar, sim", decreta, em uníssono com o papa Francisco, que faz pouco pediu aos jovens filipinos que amem e chorem pelos outros.

Se for preciso arrancar gargalhadas, contem com ele. Certa vez, na decadente região do Cadeião, em Foz, a dona de um ponto de prostituição chamou os frades às falas. Queria lhes doar a casa que mantinha – que fizessem do lugar o que quisessem, até uma capela. Fizeram uma capela. Na hora das missas, não se ouvia um pio na zona de meretrício. Necas de música de corno, nada. Dava-se uma hora de trégua para os ofícios religiosos. Não faltavam fieis.

A essa altura de sua peregrinação, frei Pedro tinha desenvolvido duas "manias" que se mostrariam determinantes na sua futura obra – 1) a de abraçar as pessoas; 2) a de rezar em voz alta pelos doentes de aids. Parecia apenas um toque pessoal, até que alguém, a 640 quilômetros do Cadeião de Foz, na Cidade Industrial de Curitiba, quis saber por que tanta insistência no assunto. A Pastoral da Aids estava para nascer.

"Frei, sou soropositivo"

Em 2003, os superiores mandaram Pedro Brondani para a Vila Nossa Senhora da Luz. Obedeceu. Passou a ajudar no atendimento a 19 capelas – em todas pedia pelos que sofriam "a solidão da aids", não se importando para o desconforto da audiência. Até que um rapaz lhe pediu um aparte. Ouvira a oração e estava ali para se declarar – "sou soropositivo". Em resposta, o frei lhe disse que queria fazer algo mais pelos contaminados, mas que não iria sozinho. "Vem comigo?"

Dois anos depois, com o aval de dom Moacir Vitti, a Pastoral da Aids estava formatada. Uma ação ficou famosa – as vigílias pelos mortos. Outra foi copiada pelo Ministério da Saúde: frei Pedrinho viajava a bordo do trailer, cruzando oito dioceses ao lado de seus agentes. O trabalho do religioso não é só o primeiro de que se tem notícia – deve também ser o único que consegue ser divertido, contrariando as expectativas fúnebres.

Parte da leveza se deve ao que acabou sendo chamada de "Terapia dos 12 Abraços", técnica informal que deveria registrar em cartório. A ideia nasceu em 1995. Frei Pedro notou que os soropositivos, ao se verem pouco tocados, também passavam a não tocar nas pessoas. O efeito psicológico da ausência de contato físico é devastador. "A indiferença mata. O vírus não mata", repete. Passou então a sugerir que os participantes da pastoral – soropositivos ou não – fizessem o propósito de abraçar, "sei lá, 12 pessoas por dia". O "12" foi aleatório, jura. Virou um viral.

O próprio Pedro não se furta da regra. Não se espantem ao passar pela Avenida Manoel Ribas, próximo à Paróquia Nossa Senhora das Mercês, onde ele mora, e encontrar um sujeito baixinho, sorridente, de longas barbas brancas, perguntando com voz rascante e agauchada: "Posso te dar um abraço?" Se as contas estiverem certas, o frei dá 4.380 abraços por ano – 87.600 desde que inventou essa moda.

Em tempo. Talvez Pedrinho consiga se mudar para a África em 2016. "Quando for, acho que vou de vez", avisa o ponta-grossense. Anda ansioso para abraçar a Etiópia. Ou seria Moçambique? Vai onde a voz do vento lhe chamar. Assim tem sido.

A outra face de Frei Pedro

A vida simples, de orações e trabalho, só abre espaço para boas leituras e para o cuidado com as plantas. Quando não está em atendimento, servindo, oferecendo preces e atenção aos mais necessitados, Frei Pedro cuida da horta e aprende valiosas lições com a mãe natureza.

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