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Estátua de Michael Jackson é uma das 23 “esculturas interativas” do Rio de Janeiro. | Alexandre Macieira/Riotur
Estátua de Michael Jackson é uma das 23 “esculturas interativas” do Rio de Janeiro.| Foto: Alexandre Macieira/Riotur

Segundo as contas arredondadas da Secretaria de Conservação e Serviços Públicos (Seconserva), o Rio de Janeiro tem 1.100 monumentos e chafarizes. Nesse universo, 23 obras se destacam: são as “esculturas interativas”, nome técnico das estátuas de bronze de figuras públicas em tamanho natural instaladas na rua ao nível do chão — ideal para aquela foto coladinho. Nos últimos anos, as imagens de Carlos Drummond de Andrade, Michael Jackson, Tom Jobim e sua turma têm monopolizado os corações e lentes de cariocas e visitantes.

O time logo terá reforços: uma estátua de Tim Maia deve ser inaugurada em junho. Além dele, Pixinguinha (será a segunda dele), Cazuza e Pelé estão na fila.

“Acho ótimo” e “podiam cuidar melhor” resumem a opinião das cerca de cem pessoas abordadas pela reportagem nos arredores dos monumentos interativos — todos foram visitados — sobre a proliferação da estatuaria VIP. Mas esta nova Era do Bronze também recebe críticas.

Síndico de volta à Tijuca

Tim Maia vai voltar para onde tudo começou, quando ainda se chamava Sebastião e tocava com Roberto e Erasmo Carlos nos Sputniks: uma escultura interativa do maior vozeirão da MPB vai ser instalada na Tijuca. O local não foi determinado, mas a inauguração deve ficar para o último fim de semana de junho.

A nova estátua é patrocinada pela Nivea, como parte de um projeto de shows gratuitos em que Ivete Sangalo e Criolo cantam hits de Tim, falecido em 1998.

A escultora Christina Motta, a mesma de Tom Jobim, diz que não pode divulgar imagens, mas dá uma pista. “Vou retratá-lo de paletó”. A estátua de bronze pesa 150 quilos — dez a mais do que teve Tim.

“Falta critério. Fazem escultura de todo mundo, não é por aí. Só porque morreu? Morrer, todo mundo morre, não é privilégio de ninguém. Tem que ser um fera”, diz o pintor, saxofonista e artista plástico Otto Dumovich, ele próprio autor de cinco obras da lista. “E precisa ter qualidade. Eu vejo cada escultura horrorosa! Quando fiz a do Dorival Caymmi [no Posto 6, em Copacabana], não ficou muito legal. Pedi pra trocar e paguei do meu próprio bolso”.

Um dono de fundição estima que o “conserto” bancado por Otto não deve ter custado menos que R$ 100 mil — custo da estátua de Jobim, segundo a Secretaria de Turismo.

A ligação dos cariocas com estátuas vem de antes de Cristo — o Redentor, inaugurado em 1931. No século XIX, praças e parques da capital imperial eram decoradas com monumentos importados. A Praça Tiradentes, no Centro, é povoada por obras com a marca da famosa Fundição Val d’Osne, na França. Das mesmas fôrmas vieram as Fontes Wallace, esculturas de ferro cuja marca são quatro moças com trajes gregos, as cariátides, sustentando um domo. Há Wallaces legítimas no Passeio Público, no Parque da Tijuca, na Avenida Rio Branco, no bairro de Santa Cruz; só nas alamedas do Jardim Botânico são sete.

Em seu livro “Carnaval no fogo”, Ruy Castro escreve: “No Rio, há mais igrejas barrocas do que shoppings, mais museus históricos do que motéis e, disparado, mais fontes e estátuas fundidas no Val d’Osne do que mictórios públicos.” Licenças bairristas à parte, uma verdade: depois de Paris, o Rio é a cidade com mais estatuaria francesa no mundo, segundo a própria prefeitura.

Ao longo do século XX, monumentos figurativos continuaram proliferando pela cidade. Havia, no entanto, um traço antipático: geralmente o homenageado era colocado sobre um pedestal. A estátua do General Osório, no Paço Imperial, é um exemplo típico: um militar no topo de uma estrutura inacessível, a cavalo e com cara de poucos amigos.

Corte rápido para 22 de março de 1996, quando é inaugurada em Vila Isabel a escultura em homenagem a Noel Rosa. Na obra de Joás Pereira dos Passos, o compositor ocupa uma mesinha de um bar estilizado, referência à vida boêmia. Curvado, traz na mão um cigarro e tem a seu lado o requisitado garçom da letra de “Conversa de botequim”, impressa no monumento. Fundamental: há um banco livre para quem quiser sentar e interagir com o compositor.

Proliferação

A arquiteta Vera Dias, gerente de monumentos e chafarizes da prefeitura desde 1992, diz que ali começou uma mudança. “Houve uma quebra de paradigma. As pessoas passaram a se aproximar e curtir monumentos. Os novos e os antigos, que ganharam nesse processo”.

Nos anos seguintes, foram surgindo mais esculturas informais de famosos congelados em poses cotidianas. Em 1997, Dumovich pôs Pixinguinha tocando sax no Centro — que só não entra na cota da interatividade porque ele está sobre um pequeno pedestal. Na virada do século, vieram duas obras de Roberto Sá: o aviador Carlo del Prete surgiu numa pracinha em Laranjeiras e Zózimo Barroso do Amaral foi instalado no final do Leblon, encarando a praia com um paletó sobre o ombro e eventualmente utilizado como suporte para alongamentos de quem anda ou corre por ali.

Nenhuma delas, a de Noel Rosa incluída, porém, alcançou o pedestal de atração turística. Essa honra coube à escultura que o mineiro Leo Santana fez de Carlos Drummond de Andrade, seu conterrâneo. Inspirada numa foto de Rogério Reis, a estátua foi posta em outubro de 2002 num banco na orla de Copacabana — bairro onde o poeta morou até sua morte, em 1987. Desde então, nunca mais teve sossego.

Entre 20h e 20h30m de uma noite fria de sexta-feira, o homem que pôs a pedra no meio do caminho “interagiu” bastante. Foi assediado por quatro gerações de gaúchas — filha, mãe, avó e bisavó fizeram questão de conhecê-lo. Jovens de uma família de mineiros que vinham de pés descalços pelo calçadão puseram meias e tênis para serem retratados ao lado do poeta. Dois casais negociaram para ver quem fazia selfie primeiro. Uma mulher com trajes esportivos se sentou ao seu lado, trocou confidências e partiu.

Vanessa Porphyre, da Guiana Francesa, estava ansiosa para encontrá-lo. “Quero tirar foto com o pensador da praia”, diz ela, imitando a pose da estátua “O Pensador”, de Rodin.

A medida do Ibope de Drummond é o desgaste em sua cabeça, tronco e braços. De todas as esculturas interativas visitadas, é a mais lustrada, tamanho o passar de mãos.

“Bronze com aquele tom dourado, amarelo como está na mão do Caymmi, é prestígio”, diz Otto Dumovich.

O sucesso de Drummond abriu caminho para outras homenagens. Muitos que passam a pé no rumo do Jardim Botânico posam junto do sujeito de olhar zombeteiro sem nem saber que se trata do jornalista Otto Lara Resende. Quem vai à Feira de São Cristóvão tira fotos com Luiz Gonzaga e sua sanfona — Luzia Moreira, visitando o local, diz que o registro com o Rei do Baião vai causar inveja em Cuité, cidade onde mora, na Paraíba. A mesa do compositor Ary Barroso na entrada do restaurante Fiorentina, no Leme, tem um banco livre para as visitas, mas o brilho sobre sua coxa revela a preferência do público pelo colo. Segundo os garçons, o fim da noite com muitos chopes leva até a confissões ao pé do ouvido da estátua.

Nos arredores da Catedral Presbiteriana, no Centro, o escultor Joás Pereira dos Passos instalou a maior concentração de esculturas interativas da cidade. A primeira, de 2003, é do reverendo Mattathias Gomes dos Santos e mais seis fiéis sentados em bancos. A eles somaram-se os pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier, o missionário Ashbel Green Simonton e sua esposa Helen Murdoch (aliás, única mulher oficialmente retratada entre as estátuas de chão) e do outro lado da rua, o teólogo João Calvino. Completando a coleção, na Cidade Nova, o reverendo Álvaro Reis.

As esculturas presbiterianas têm um diferencial: em ambientes cercados, estão protegidas da depredação. A cada par de óculos roubado de Drummond (já foram dez), Ary, Michael ou Renato Russo (último caso, ainda sem óculos), o poder público tem de contabilizar o conserto inesperado. Outra modalidade de vandalismo é o roubo de objetos das mãos: o Estudante de Arte do Parque Lage perdeu a prancheta e desenha sobre o nada, enquanto o colunista social Ibrahim Sued ficou sem o jornal que ajudava a identificá-lo ali meio perdido e despercebido sob as árvores na frente do Copacabana Palace.

Com essa “gente’’ bronzeada mostrando seu valor pela cidade, uma polêmica era inevitável. Ela veio em 2004, quando surgiu num poste de Ipanema Luiz Lopes, o Corneteiro, herói desconhecido das batalhas pela independência do Brasil. Aliás, estátua não: o autor, Ique Woitschach, diz que fez e faz “carisculturas”, misto de caricatura e escultura. Nem todo mundo entendeu. “Não quiseram entender!Não é um retrato, é uma charge tridimensional”, diz Ique.

Houve até um pedido pela retirada do monumento, o que na época levantou a discussão sobre o processo de escolha das estátuas que chegam às ruas.

Figura

O personagem precisa ter quem o defenda. Geralmente o pedido vem da família, mas pode ser um fã-clube ou moradores de um bairro buscando eternizar o herói local. Um patrocínio facilita o processo. Foi o caso da Academia Brasileira de Letras (ABL) com as esculturas dos imortais Manuel Bandeira e Joaquim Nabuco — instaladas, respectivamente, em 2007 e 2011 na calçada da instituição (ambas de Dumovich). Agnaldo Rodrigues, que trabalha no prédio da ABL, conta que as estátuas são visitadas por estudantes e turistas incautos. “O cara tira aquela baita câmera e a gente pensa: ‘Ih, vão pegar o gringo!’ Mas até hoje não vi nada”.

Também entraram nas teleobjetivas dos gringos as homenagens a Caymmi, em Copacabana, a Ismael Silva, no Estácio (ainda que um flanelinha diga que se trata de Estácio de Sá) e a Michael Jackson. A estátua do cantor americano foi inaugurada em 2010, um ano após sua morte, no morro Santa Marta, onde ele gravou um clipe em 1996. A obra é de Ique, que diz ter muito orgulho dela. “Hoje ela faz parte de uma mudança naquela comunidade, está no roteiro turístico feito no morro”.

Ao mesmo tempo que considera a panorâmica laje de Michael Jackson ideal, Ique tem ressalvas com a instalação de outra escultura sua. “O Chacrinha está no local certo. O local certo é que está errado. Ele passava ali na rua General Garzon (Jardim Botânico) para ir ao Teatro Fênix. Mas o ambiente poderia ser mais convidativo, como fizeram com o Renato Russo”, diz Ique, citando outra obra de sua autoria.

O líder da Legião Urbana foi instalado em 2012 na Ilha do Governador, onde passou a infância. Durante o dia, fica sozinho. À noite, ganha a companhia de fãs que, sentados nos bancos próximos ou ao pé do ouvido, revivem seus hits.

O artista plástico Carlos Vergara critica a onda de esculturas de famosos. “É uma proliferação de bobagem. Muitas vezes é melhor não reproduzir a imagem física do cara, mas fazer um esforço poético para reproduzir sua alma”.

Fred Coelho, professor da PUC-Rio e colunista do Segundo Caderno do GLOBO, acha que as obras são “palatáveis”. “O entendimento é direto, fulano foi famoso. Já obras como as de Waltércio Caldas, Amilcar de Castro e Ivens Machado criam uma relação mais complexa com o entorno, exigem mais manutenção e oferecem uma fruição mais reflexiva”.

Vera Dias, da Seconserva, justifica tamanho apetite pelo palatável. “Claro que as outras artes precisam ser expostas, mas, infelizmente, popular é o que atrai a atenção de todos. Se a maioria dos pedidos que chegam são de estátuas figurativas de famosos, é natural que a prefeitura seja mais sensível a essas demandas do que a outras”.

A última inauguração foi a de Tom Jobim, no Arpoador, em 2014. Na semana passada, ela ostentava um coração pichado no peito. A obra é de Christina Motta, da famosa escultura de Brigitte Bardot em Búzios, do futuro Tim Maia na Tijuca e, espera ela, do adiado Cazuza no Leblon. Há também pedidos para pôr Carmen Miranda na Lapa, Clarice Lispector no Leme, Pelé (que está vivo!) no Maracanã.

E um segundo Pixinguinha surgirá em Ramos. Ique, sem medo de polêmica, pretende colocar o autor de “Carinhoso” vestindo pijamas em pleno Bar da Portuguesa, seu boteco de estimação.

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