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Simone Tavares, de Campo Grande (MS), e as duas filhas, Patrícia, de 20 anos, e Adriana, de 14. As duas garotas nasceram com microcefalia. | /Agência RBS
Simone Tavares, de Campo Grande (MS), e as duas filhas, Patrícia, de 20 anos, e Adriana, de 14. As duas garotas nasceram com microcefalia.| Foto: /Agência RBS

Doença até então pouco conhecida, a microcefalia não preocupa apenas famílias planejando um bebê para breve, mas também os médicos, que correm para entender o impacto do zika vírus em recém-nascidos. Ainda não há certeza da relação entre a epidemia e o aumento de ocorrências de má-formação cerebral, mas especialistas experientes no assunto já estão preocupados com a gravidade dos casos brasileiros.

É importante esclarecer que há níveis de microcefalia, assim como muitas origens para o problema. Alguns casos são tão leves que quase não causam complicações. Outros são tão severos que o tempo de vida varia de alguns meses até 10 anos, dependendo do acesso a cuidados médicos, entre outros fatores.

A história de Simone Tavares (foto), de Campo Grande (MS), mãe de duas meninas com a má-formação, ajuda a ilustrar como a microcefalia era um mistério há 20 anos, quando veio ao mundo Patrícia. Nascida aos sete meses de gestação, ela foi diagnosticada na primeira consulta de rotina. Os médicos informaram que dificilmente Patrícia iria caminhar ou falar.

“Foi um susto. Saí do posto de saúde e não sabia mais onde era minha casa. Passamos por uma fase de luto e, quando superamos ela, fomos atrás de informações. Para nós, ela era perfeita”, conta Simone.

Um dos trunfos dessa mãe foi não encarar o diagnóstico como uma sentença. Uma neurologista sugeriu ao casal que esperasse, e que só o tempo iria dizer do que a menina seria capaz. Patrícia andou e falou quase na mesma idade que as outras crianças e, desde pequena, foi estimulada para seguir evoluindo. Seis anos depois, Simone decidiu engravidar de novo e foi informada pelos médicos que as chances de o bebê ter microcefalia eram muito pequenas, as mesmas de qualquer outra pessoa. Aos cinco meses de gestação, descobriu que Adriana também teria a má-formação.

Hoje, Patrícia tem 20 anos, e Adriana, 14. A mãe calcula que a idade mental da mais velha seja de 12 a 13 anos, enquanto a outra estaria entre seis e sete anos. Elas sempre frequentaram a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e estudam em escolas regulares. Apesar de não lerem e escreverem, as irmãs têm uma turma que as inclui e defende, se preciso. Fazem fisioterapia, aulas de dança e atletismo. Como para-atletas, colecionam mais de 60 medalhas.

Só quatro anos depois do nascimento da filha mais nova é que Simone descobriu, consultando uma geneticista, que ela e o marido tinham uma alteração em um cromossomo, o que causou a má-formação nas meninas. Simone se dedica exclusivamente a elas e reúne mães por redes sociais para mostrar que microcefalia não é um “bicho de sete cabeças. Uma bandeira que levanta é que as mães não abortem:

“Acho importante estar divulgando nossa história, agora que está se discutindo o aborto nesses casos. Eu passei por tudo isso, tinha uma filha, engravidei e, quando estava com cinco meses de gravidez, tive o diagnóstico. Teria a opção do aborto. Mas, como não havia certeza, decidi ter o bebê. Hoje, com diagnósticos melhores, faria isso de novo. Sei que microcefalia é uma doença que a pessoa pode viver em sociedade. A mulher é dona do próprio corpo, tem o direito de escolher, mas deve exercer esse direito usando métodos contraceptivos.”

Outra história que tem repercutido é a de Ana Carolina Dias Cárcere, 24 anos, casualmente também moradora de Campo Grande (MS). Ela concluiu a faculdade de Jornalismo no ano passado, contrariando a previsão de médicos que a atenderam desde a infância.

Seu tipo de microcefalia é menos grave, causada por canioestenose (fechamento precoce de suturas cranianas, os tecidos moles que unem os ossos do crânio), mas a jornada não foi menos tortuosa. Ela passou por cinco cirurgias para abrir espaço a fim de o cérebro crescer.

Ana sofreu com convulsões na infância, seu corpo rejeitou uma prótese. Começou a estudar aos sete anos e, aos nove, lia e escrevia. Estudou com a mesma turma até o final. Para que as pessoas soubessem mais sobre a microcefalia, escreveu um livro em que conta sua trajetória, cujo nome é Selfie: Em Meu Autorretrato, a Microcefalia é Diferença e Motivação.

A história de Ana tomou proporções gigantescas, o que a motivou a escrever em um grupo de mães com filhos diagnosticados com a má-formação.

“É claro vou ouvir muita gente duvidando, principalmente os ditos especialistas, de que o que eu tenho não é microcefalia... Não é por que eu não tive tantas complicações como o filho de muita gente que eu não tenha isso... Deixo aqui registrado que sou o que sou graças ao esforço dos meus pais, os quais foram os primeiros a passar perrengue comigo em cama de hospital sem saber se eu iria viver ou fazer qualquer coisa ou não”, escreveu.

O que dizem os especialistas

Há diferentes níveis de microcefalia, e cada corpo reage de uma forma ao longo do tempo. Alguns pacientes sobrevivem por décadas, alcançando uma evolução gradativa, apesar das dificuldades. Outros têm apenas semanas, meses ou alguns anos de vida. Os médicos costumam dividir os casos em dois grandes grupos: os provocados por fatores genéticos e os por infecções adquiridas na gestação (toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus são exemplos). Outros possíveis causadores são abuso de álcool e de drogas ilícitas na gravidez e síndromes genéticas, como a de Down.

Especialistas internacionais estão no Brasil tentando revisar os casos recentes. E dezenas de neurologistas brasileiros se aliam aos colegas estrangeiros para buscar as primeiras evidências sobre a relação entre o vírus e a má-formação. Um estudo com bebês brasileiros publicado pelo Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) ajudou a reforçar essa ligação. A força-tarefa conta com professores de diversas instituições de ensino e hospitais, entre eles a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Quem liderou o relatório foi Lavínia Schuler-Faccini, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e professora da federal gaúcha.

Os pesquisadores analisaram 35 filhos de mães que viviam ou visitaram áreas afetadas pelo zika durante a gravidez. Dos bebês analisados, 25 tiveram microcefalia severa, e 17 sofrem de pelo menos alguma anomalia neurológica. Ainda será necessário um levantamento de dados muito maior para que se tire as primeiras conclusões. O geneticista William Dobyns, do Hospital Infantil de Seattle (EUA), que estuda o assunto há 30 anos e tem contribuído com os cientistas daqui, declarou à agência Reuters que, apesar de ainda ser uma interpretação muito preliminar, as condições dos pacientes parecem ser “muito mais severas do que uma simples microcefalia”.

Dobyns mostrou imagens de exames realizados pelos brasileiros a um grupo de especialistas americanos. Todos teriam ficado chocados com a escala das má-formações. Ele considerou particularmente alarmante o excesso de fluído cérebro espinhal entre o cérebro e o crânio dos bebês brasileiros estudados, o que indicaria que algo estaria fazendo os cérebros encolherem.

Um dos brasileiros que trocam informações com a equipe de Dobyns há algum tempo é o médico Leonardo Vedolin, especialista em exames do cérebro.

“Estamos formando um banco de dados com exames de várias partes do país, a maioria do Nordeste. Vamos analisar junto ao pessoal de Seattle para tentar encontrar algum padrão nos exames de tomografia e ressonância relacionados ao vírus”, conta Vedolin, que integra a equipe do Hospital Moinhos de Vento.

A intenção é ver se a má-formação se estabelece de forma parecida quando há influência do zika. O Ministério da Saúde investiga mais de 4 mil casos suspeitos de microcefalia – 400 foram confirmados. Antes do zika preocupar o país, a média brasileira era de 163 casos anualmente nos últimos cinco anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Ministério da Saúde e o aborto

Após a Organização das Nações Unidas (ONU) defender a descriminalização do aborto em meio à epidemia de zika, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, afirmou ontem que o ministério seguirá o que determina a legislação brasileira. Castro lembrou que a interrupção da gravidez não é permitida por lei em casos de microcefalia.

“A posição do Ministério da Saúde é inequívoca, é a posição em defesa da lei. Somos agentes públicos e não podemos ter outra defesa que não seja a defesa estrita da lei. A legislação brasileira só permite aborto em três situações, que não inclui essa daí (microcefalia)”, afirmou o ministro em entrevista ao vivo à TV Cidade Verde, afiliada do SBT no Piauí.

A legislação brasileira permite o aborto em três casos: gravidez resultante de estupro, quando há risco de morte para a mãe e de fetos com anencefalia.

OMS: cuidado ao relacionar zika e Guillain

A Organização Mundial da Saúde (OMS) pediu prudência sobre a possível relação entre o zika vírus e a morte de três pessoas na Colômbia pela síndrome de Guillain-Barré. O pedido foi feito ontem pelo porta-voz da OMS, Christian Lindmeier, em Genebra.

O país latino-americano registra 22.612 infectados pelo zika – entre eles 2.824 grávidas –, além do grande aumento de Guillain-Barré, de acordo com o último boletim epidemiológico divulgado pelo Instituto Nacional de Saúde no sábado, com dados de até 30 de janeiro. Apenas nas quatro primeiras semanas de 2016, quase 11 mil pessoas foram contaminadas na Colômbia, o segundo país mais afetado pelo vírus depois do Brasil, que tem mais de meio milhão de casos.

No Brasil, um levantamento feito pelo jornal O Globo identificou elevação significativa de Guillain-Barré em pelo menos seis Estados – Pernambuco, Piauí, Sergipe, Rio Grande do Norte, Maranhão e Bahia. Os dados, no entanto, não são oficiais. Dois jovens estão internados em estado grave no Hospital Universitário Antônio Pedro, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, após desenvolver uma forma severa da síndrome. Apenas neste ano, foram 16 pacientes com Guillain-Barré (até 2015, a média era de cinco casos anuais).

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